«Falar da poesia de Eugénio de Andrade
implica, de certa forma, falar de música. Da música das suas palavras e da que
a prolonga, nascida, neste caso, das mãos de Lopes Graça, que um feliz
acaso me fez encontrar e que originou a vontade de me deter nestas duas formas
de arte, para tentar descobrir como os sons musicais e a palavra se cruzam e se
complementam no universo destes artistas». In Ana Cristina R. O.
«Haverá, certamente, alguma forte razão para que em parte alguma encontremos culturas cujo
canto seja completamente desprovido de palavras, desprovido de poesia. De
facto, apesar de serem artes autónomas e com características muito próprias e
distintivas, a literatura e a música sempre conviveram e se influenciaram
mutuamente ao longo da sua história, ainda que feita de encontros e
desencontros, mantendo uma intensa relação criativa e inspirando-se reciprocamente.
Orpheu, o músico e o poeta que, com o seu
canto, amansava as feras, animava as pedras, fazia mover as árvores e
pacificava os homens, é o símbolo mítico desta profunda união entre as duas
artes…, diz-nos Aguiar Silva. Protegidas pelas musas da antiga Grécia,
música e poesia eram indissociáveis. A música acompanhava a poesia lírica, que
deverá esta designação à lira, instrumento usualmente utilizado, a par do aulos
e da cítara. Se bem que hoje não se possa considerar que a música e literatura
se influenciem de forma directa como já aconteceu no passado, em que a evolução
de uma testemunhava de perto a da outra, ou que a literatura seja a principal influenciadora da música, e muito menos a
música a fonte mais demandada pelos homens de letras, é difícil não
concordar com João Freitas Branco quando afirma que não é preciso ser profeta para intuir a perduração deste intercâmbio de
musas. Há genes comuns a literatura e música.
Para Lopes Graça, torna-se igualmente difícil estabelecer rigoroso e nítido ponto
de separação entre a palavra e o canto; se é certo que aquela pode, sob o império
da paixão, tender para a música, (…) também o canto, ao invés, quando se quer
fazer mais persuasivo e, sobretudo, quando expõe, canta ou narra, como no
recitativo, tende para as condições da voz falada. Tentaremos perceber esta
ligação entre poesia e música, analisando a linguagem poética de Eugénio de
Andrade e a linguagem musical de Lopes Graça, ligação que estes homens que
se destacaram nas artes portuguesas cultivaram de forma modelar. É usual,
por parte da crítica, a associação da escrita de Eugénio de Andrade à
arte dos sons. De resto, o próprio escritor, frequentemente, a referiu nos seus
escritos. A musicalidade das suas palavras, a sonoridade e ritmo dos seus
versos, as diferentes tonalidades melódicas que sugerem e a brevidade das suas
composições serão alguns dos aspectos que aproximam a sua à arte dos sons. Também
Lopes Graça encontrou na literatura inspiração frequente para a sua criação
musical, onde é visível o enorme interesse que a produção literária portuguesa
sempre lhe suscitou. De facto, percorrendo a vasta obra musical que nos legou,
deparamo-nos com um extenso leque de escritores que mereceram a sua atenção,
entre os quais se encontram os mais representativos da nossa literatura, desde
os seus primórdios à actualidade, e que ele tentou incansavelmente difundir e
ilustrar com os sons musicais.
Da obra destes dois artistas, seleccionámos As Mãos e os Frutos, primeiro
livro do poeta e o ciclo de músicas para voz e piano do compositor, com o
intuito, não só de fazer uma leitura das composições, mas também de tentar
demonstrar que duas formas de arte podem completar-se, evidenciando essa união
tão natural e que se manteve inalterável durante tanto tempo. A poesia de Eugénio
de Andrade será objecto de uma abordagem genérica e abrangente, dando especial ênfase
a palavras que o poeta reutiliza ao longo da sua criação poética e intimamente ligadas
ao seu primeiro livro, sinais que foi
semeando (considerando que, em
poesia, as palavras não são nomes, são sinais, Eugénio de Andrade é um semeador de sinais) ao longo da sua
obra e que nos permitirão ilustrar o percurso da sua escrita. Assim, as mãos e os frutos, que nele surgem com um destaque especial, que lhes é
dado até pelo próprio título do livro, constituirão a fonte de onde
decorrem outras imagens e palavras que povoam o seu universo poético.
Encontramos, na sua poesia, algumas repetições obsessivas de
temas, palavras, expressões ou imagens que atestam as suas preferências
solares, mas também algumas que podemos adjectivar de nocturnas, que se vão
transformando para dar lugar sucessivamente a novas palavras e imagens. De
resto, é o próprio poeta o primeiro a reconhecer a sua atracção pelas
metamorfoses que surgem frequentemente na sua poesia: À melodia exasperada e expectante, cálida e apaziguadora de Eros, a
esse canto que da fundura do ser remonta às vertentes da morte, deve a minha
poesia quase sempre o impulso inicial. Mas só esse impulso, pois é então que
outra paixão começa: a das metamorfoses. Muitas palavras poderiam ser
apontadas, já que as metamorfoses que se vão apresentando nos seus versos são
múltiplas e algumas até surpreendentes. Consideraremos, no entanto, as palavras
que estão mais intimamente ligadas ao seu primeiro livro, ou o que foi por ele
assim considerado, durante muito tempo». In Ana
Ribeiro Oliveira, As Mãos e os Frutos de
Eugénio de Andrade e de Lopes-Graça, Dissertação de Mestrado em Literatura
Portuguesa, Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra, 2010.
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