segunda-feira, 31 de outubro de 2022

No 31. Viagem a Portugal. José Saramago. «… que profundo é este silêncio do Vale da Vilariça, que consoladora a amizade, o viajante está prestes a adormecer, quem sabe se nesta cama de dossel dormiu…»

jdact e cortesia de wikipedia

De Nordeste a Noroeste. Duro e Dourado

«(…) É em Azinhoso, aldeiazinha perto, que começa a nascer a paixão do viajante por este românico rural do Norte. O risco das minúsculas igrejas não tem ousadias, é receita trazida de longe e ligeiramente variada para ressalvar o prestígio do construtor, mas muito se engana quem cuide que, tendo visto uma, viu todas. Há que dar-lhes a volta com todo o vagar, esperar calado que as pedras respondam, e, se houver paciência, de cada vez sairá dali repeso o viajante, este ou qualquer outro. Repeso de não ficar mais tempo, pois não está bem demorar um quarto de hora ao pé duma construção que tem setecentos anos, como neste caso de Azinhoso. Sobretudo quando começam a aproximar-se pessoas que querem conversar com o viajante, pessoas que justamente conviria ouvir porque são as herdeiras desses sete séculos. O pequeno adro está coberto de erva, o viajante assenta nela as suas pesadas botas e sente-se, não sabe porquê, reabilitado. Por mais que pense, é esta a palavra, não há outra, e não a sabe explicar. Daqui a pouco será noite, que no Outono vem cedo, e o céu cobre-se de nuvens escuras, talvez amanhã chova. Em Castelo Branco, quinze quilómetros ao sul, o ar parece ter passado por uma peneira de cinza, só na cor, que de pureza até os pulmões estranham. À beira da estrada há uma comprida fachada de solar, com grandes pináculos nos extremos. Se houvesse fantasmas em Portugal, este sítio seria bom para assustar os viajantes: luzes por trás das vidraças partidas, talvez um estridor de dentes e correntes. Porém, quem sabe, talvez que às horas do dia esta decadência seja menos deprimente.

Quando o viajante entra em Torre de Moncorvo, já há muito tempo que é noite fechada. O viajante considera que é desconsideração entrar nas povoações a tais horas. As povoações são como as pessoas, aproximamo-nos delas devagar, paulatinamente, não esta invasão súbita, a coberto da escuridão, como se fôssemos salteadores mascarados. Mas é bem feito, que elas pagam-se. As povoações, é conveniente lembrar, sabem defender-se à noite. Põem os números das portas e os nomes das ruas, quando os há, em alturas inverosímeis, tomam esta praça igual a este largo, e, se lhes dá no apetite, colocam-nos na frente, a empatar o trânsito, um político com o seu cortejo de aderentes e o seu sorriso de político que anda a segurar os votos. Foi o que fez Torre de Moncorvo. O pior é que o viajante vai destinado a uma quinta que fica para além, no Vale da Vilariça, e a noite está tão negra que dos lados da estrada não se sabe se a encosta, a pique, é para cima ou para baixo. O viajante transporta-se dentro de um borrão de tinta, nem as estrelas ajudam, que o céu é todo uma pegada nuvem. Enfim, depois de muito desatinar, chega ao seu destino, antes lhe ladraram cães desaforados, e entra na casa onde o esperam com um sorriso e a mão aberta. Grandes, portentosos eucaliptos tornam ainda mais escura a noite lá fora, mas não tarda que o jantar esteja na mesa, e depois do jantar um copo de vinho do Porto enquanto não vem a hora de dormir, e, quando ela chega, este é o quarto, uma cama de dossel, daquelas altas, que só por ser alto o viajante dispensa o degrauzinho para lá chegar, que profundo é este silêncio do Vale da Vilariça, que consoladora a amizade, o viajante está prestes a adormecer, quem sabe se nesta cama de dossel dormiu sua majestade o rei ou talvez, preferível, sua alteza a princesa». In José Saramago, Viagem a Portugal, 1979-1980, 1981, Porto Editora, Reimpressão 2022, ISBN 978-972-003-473-1.

Cortesia de PEditora/JDACT

 JDACT, José Saramago, Literatura, Nobel, A Arte da Escrita,