De Nordeste a Noroeste. Duro e Dourado
O
Semão aos Peixes
«(…) Os castanheiros estão
cobertos de ouriços, tantos que fazem lembrar bandos de pardais verdes que
nestes ramos tivessem pousado a ganhar forças para as grandes migrações. O
viajante é um sentimental. Pára o carro, arranca um ouriço, é uma recordação
simples para muitos meses, já o ouriço ressequiu, e pegar nele é tornar a ver o
grande castanheiro da beira da estrada, sentir o ar vivíssimo da manhã, tanta
coisa cabe afinal numa campestre promessa de castanha. Vai a estrada em curvas
descendo para Vimioso, e o viajante contente murmura: Que lindo dia. Há nuvens
no céu, daquelas soltas e brancas que passeiam pelo campo sombras esparsas, um
correr de pouco vento, parece o mundo que acabou agora de nascer. Vimioso está
construído numa encosta suave, é vila sossegada, isto é o que parece ao
viajante de passagem que não se vai demorar, apenas o tempo de pedir informações
a esta mulher. E aqui registará a primeira desilusão. Tão prestável estava
sendo a informadora, por pouco não daria a volta aos bairros a mostrar as raridades
locais, e afinal o que queria era vender as toalhas do seu fabrico.
Não se pode levar a mal, mas o
viajante está nos seus princípios, julga que o mundo não tem mais que fazer senão
dar-lhe informações. Por uma rua abaixo foi descendo e lá ao fundo teve o prémio.
É certo que, aos seus olhos desabituados de arquitecturas sacras rurais, tudo
ganha facilmente foros de maravilha, porém não é pequeno prazer dar por estes
contrastes entre frontarias seiscentistas, robustas, mas com primeiros sinais
de certa frieza barroca, e o interior da nave, baixa e ampla, com uma atmosfera
romântica que nenhum elemento arquitectónico confirma. Contudo, não é este o verdadeiro
prémio. À sombra das árvores, cá fora, sentado nos degraus que dão acesso ao
adro, o viajante ouve contar uma história da história da construção do templo.
Com a condição de ter capela privativa, certa família ofereceu uma junta de
bois para acarretar a pedra destinada ao levantamento da igreja. Levaram nisto
os boizinhos dois anos, tão contados os passos entre a pedreira e o telheiro
dos alvenéis, que por fim era só carregar o carro, dizer ala, e os
animais se encarregavam de ir e vir sem boieiro nem guardador, atroando aqueles
ermos com o gemer dos cubos mal ensebados, em grandes conversas sobre a presunção
dos homens e das famílias. Quis o viajante saber que capela é essa e se há
ainda descendentes habilitáveis ao usufruto. Não lho souberam dizer. Lá dentro
não viu sinais particulares de distinção, mas pode ser que ainda existam. Fica
o conto exemplar duma família que de si própria nada deu, salvo os bois, encarregados
de abrir, com grande canseira, a estrada que haveria de levar os donos ao paraíso.
Torna
o viajante sobre os seus passos, distraído do caminho que já conhece, em
Malhadas vem-lhe a tentação de parar e pedir o almoço prometido, porém tem seus
acanhamentos, mesmo sabendo que deles virá a arrepender-se. Na povoação de Duas
Igrejas é que vivem os pauliteiros. Destes nada ficará a saber o viajante, nem
são horas de andarem os dançarinos a paulitar pelas ruas. Já ficou mostrado que
tem o viajante direito às suas imaginações, e nisto de pauliteiros não é de
hoje nem é de ontem que presume que mais bela e fragorosa dança seria se, em
vez de paulitos, batessem e cruzassem os homens sabres ou adagas. Então, sim, teria
o Menino Jesus da Cartolinha boas e militares razões para passar revista a este
exército de bordados, coletinhos e lenços ao pescoço. É o defeito do viajante:
quer ter mais do que o bom que tem. Que lho perdoem os pauliteiros». In
José Saramago, Viagem a Portugal, 1979-1980, 1981, Porto Editora, Reimpressão
2022, ISBN 978-972-003-473-1.
Cortesia de PEditora/JDACT
JDACT, José Saramago, Literatura, Nobel, A Arte da Escrita,