quinta-feira, 27 de outubro de 2022

Viagem a Portugal. José Saramago. «Torna o viajante sobre os seus passos, distraído do caminho que já conhece, em Malhadas vem-lhe a tentação de parar e pedir o almoço prometido, porém tem seus acanhamentos, mesmo sabendo que deles virá a arrepender-se»

jdact e cortesia de wikipedia

De Nordeste a Noroeste. Duro e Dourado

O Semão aos Peixes

«(…) Os castanheiros estão cobertos de ouriços, tantos que fazem lembrar bandos de pardais verdes que nestes ramos tivessem pousado a ganhar forças para as grandes migrações. O viajante é um sentimental. Pára o carro, arranca um ouriço, é uma recordação simples para muitos meses, já o ouriço ressequiu, e pegar nele é tornar a ver o grande castanheiro da beira da estrada, sentir o ar vivíssimo da manhã, tanta coisa cabe afinal numa campestre promessa de castanha. Vai a estrada em curvas descendo para Vimioso, e o viajante contente murmura: Que lindo dia. Há nuvens no céu, daquelas soltas e brancas que passeiam pelo campo sombras esparsas, um correr de pouco vento, parece o mundo que acabou agora de nascer. Vimioso está construído numa encosta suave, é vila sossegada, isto é o que parece ao viajante de passagem que não se vai demorar, apenas o tempo de pedir informações a esta mulher. E aqui registará a primeira desilusão. Tão prestável estava sendo a informadora, por pouco não daria a volta aos bairros a mostrar as raridades locais, e afinal o que queria era vender as toalhas do seu fabrico.

Não se pode levar a mal, mas o viajante está nos seus princípios, julga que o mundo não tem mais que fazer senão dar-lhe informações. Por uma rua abaixo foi descendo e lá ao fundo teve o prémio. É certo que, aos seus olhos desabituados de arquitecturas sacras rurais, tudo ganha facilmente foros de maravilha, porém não é pequeno prazer dar por estes contrastes entre frontarias seiscentistas, robustas, mas com primeiros sinais de certa frieza barroca, e o interior da nave, baixa e ampla, com uma atmosfera romântica que nenhum elemento arquitectónico confirma. Contudo, não é este o verdadeiro prémio. À sombra das árvores, cá fora, sentado nos degraus que dão acesso ao adro, o viajante ouve contar uma história da história da construção do templo. Com a condição de ter capela privativa, certa família ofereceu uma junta de bois para acarretar a pedra destinada ao levantamento da igreja. Levaram nisto os boizinhos dois anos, tão contados os passos entre a pedreira e o telheiro dos alvenéis, que por fim era só carregar o carro, dizer ala, e os animais se encarregavam de ir e vir sem boieiro nem guardador, atroando aqueles ermos com o gemer dos cubos mal ensebados, em grandes conversas sobre a presunção dos homens e das famílias. Quis o viajante saber que capela é essa e se há ainda descendentes habilitáveis ao usufruto. Não lho souberam dizer. Lá dentro não viu sinais particulares de distinção, mas pode ser que ainda existam. Fica o conto exemplar duma família que de si própria nada deu, salvo os bois, encarregados de abrir, com grande canseira, a estrada que haveria de levar os donos ao paraíso.

Torna o viajante sobre os seus passos, distraído do caminho que já conhece, em Malhadas vem-lhe a tentação de parar e pedir o almoço prometido, porém tem seus acanhamentos, mesmo sabendo que deles virá a arrepender-se. Na povoação de Duas Igrejas é que vivem os pauliteiros. Destes nada ficará a saber o viajante, nem são horas de andarem os dançarinos a paulitar pelas ruas. Já ficou mostrado que tem o viajante direito às suas imaginações, e nisto de pauliteiros não é de hoje nem é de ontem que presume que mais bela e fragorosa dança seria se, em vez de paulitos, batessem e cruzassem os homens sabres ou adagas. Então, sim, teria o Menino Jesus da Cartolinha boas e militares razões para passar revista a este exército de bordados, coletinhos e lenços ao pescoço. É o defeito do viajante: quer ter mais do que o bom que tem. Que lho perdoem os pauliteiros». In José Saramago, Viagem a Portugal, 1979-1980, 1981, Porto Editora, Reimpressão 2022, ISBN 978-972-003-473-1.

Cortesia de PEditora/JDACT

 JDACT, José Saramago, Literatura, Nobel, A Arte da Escrita,