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«(…) Uma rapariga de sapatos de homem
despejava um caixote numa cova repleta de cascas, de embalagens de insecticida,
de bisnagas, de mostradores de bússola e de frascos de xarope vazios. O senhor Francisco
Xavier, indiano gordo de sandálias, recebeu-o no camarote do vestíbulo cercado de
uma dúzia de indianozinhos todos parecidos com ele, igualmente gordos e de sandálias,
de tamanhos diversos como a escala de teclas de um xilofone. Cheirava a insónia
e a pés, cheirava ao estrume de curral da miséria, e percebia-se o andamento de
migração das nuvens pelos orifícios do reboco. Como se houvesse também guerra aqui,
pensou Pedro Álvares Cabral, como se um morteiro destruísse os prédios.
Eu sou de Moçambique, elucidou o
senhor Francisco Xavier num sotaque macerado de gentio a recolher-lhes as senhas
de desembarque carimbadas pelas armas do escrivão. E ele imaginou o goês, de
charuto apagado na saliva das mandíbulas, a adorar na floresta criaturas de oito
pernas ou a impingir tafetás de praça em praça antecedido pelo volume persuasivo
da barriga. Lá fora escutavam-se os vagabundos que discutiam aos guinchos e as rolas
de papo que tornavam aos paus de fileira, e debruçando-me lobriguei o chibo a tiritar
entre os calhaus e os edifícios desertos que anoiteciam devagarinho à minha
volta.
Não os preveniram, espantou-se o senhor
Francisco Xavier, que têm de entregar cinco contos de sinal? A rapariga do
caixote regressou falar sozinha e sumiu-se na boca de uma escada: os sapatos deslaçados
encalhavam no rebordo dos degraus. Cochichos e choros espalhavam-se na extensão
de trevas da Residencial. Um pássaro qualquer assobiava, estrangulado, no buraco
de caliça de uma esquina.
Na Beira comprei eu três cinemas e
uma moradia com piscina, disse o senhor Francisco Xavier exibindo os braços vazios
de déspota apeado. Três cinemas e uma moradia frente às caravelas do porto, sem
contar os criados, é claro, e se me jurassem que havia de governar esta espelunca
para ganhar a vida ria-me uma tarde inteira pelo menos. Só os calores que os hóspedes
me pregam dão comigo em doido. Por falar em calotes, rapaz, os cinco contos vêm
ou não vêm? Três cinemas, poça. E assine-me este recibozinho para lhe receber o
subsídio, é uma norma do Apóstolo das Índias, entende? Honestidade de uma
banda, honestidade da outra.
A mulata arreou as malas e os sacos
num baque de desmaio. Deviam ser oito horas mau grado o silêncio de poço dos relógios
atendendo a que desdobravam os toldos dos cabarés de Santa Bárbara, e sujeitos agaloados
a oiro, vestidos de alferes de carnaval, controlavam um tráfego complicado de clientes
e de pu… As rolas inquietavam-se nos peitoris desmantelados e ele pensou que Lixboa
seln restaurantes chineses era a cidade mais feia sobre a terra. Pensou a olhar
um ninho de vespas num taipal Onde vou arranjar agora cinco contos para acalmar
o gordo, e nesse instante guincharam do escuro Ó Xavier, o indiano disse-nos Aguentem
pianinho que eu já venho, e partiu a estalar as sandálias, seguido pelo xilofone
dos filhos, para as despensas, patamares, saletas, caves e túneis da pensão.
De maneira que ficaram à espera no
vestíbulo diante do alarido do tojo e dos ralos de agosto: a mulata e o garoto
completamente mudos, arqueados e quietos na escuridão que crescia, medindo tudo,
verificando tudo, espiolhando tudo, as centopeias sem rumo, os escaravelhos mortos,
as lagartixas átonas nos relevos do tecto, a noite e a via láctea dos
candeeiros do Martim Moniz que nenhum dedo desfia, e eu, branco de Coruche sem instintos
nem mistério, demasiado afastado dos castanheiros da infância, a cismar no dinheiro
do indiano e na forma de roubá-lo, ouvindo passos e cicios e arrastar de baús, lembrando-me
do meu avô a tactear o sol das três da tarde com a bengala até que a voz do senhor
Francisco Xavier proclamou, à medida que as sandálias bolorentas se avizinhavam
de novo, Arranjei-lhes um quarto com mais oito famílias de Angola, reparem na vossa
sorte, caneco, tudo conterrâneo, tudo solidário, tudo compincha, tudo no paleio,
que é dos cinco contitos, ó sócio?» In António Lobo Antunes, As Naus, 1988,
Publicações dom Quixote, LeYa, 2016, ISBN 978-972-205-995-4.
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