sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

Os Cus de Judas. António Lobo Antunes. «Não quer passar ao vodka? Enfrenta-se melhor o espectro da agonia com a língua e o estômago a arder, e esse tipo de álcool de lamparina que cheira a perfume da tia-avó…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Encontrávamo-nos às vezes, à noite, na amurada, ele de livro em punho e eu de mãos nos bolsos, para fitar as mesmas ondas negras e opacas em que reflexos ocasionais (de que luzes? de que estrelas?, de que gigantescas pupilas?) saltavam como peixes, como se buscássemos, naquela escura extensão horizontal que as hélices do barco aravam, uma esclarecedora resposta a inquietações informuladas. Perdi esse padre de vista (uma das minhas sinas, aliás, consiste em perder rapidamente de vista todos os padres e todas as mulheres que encontro) mas recordo com a nitidez de um pesadelo infantil a sua careta de Noé perplexo, embarcado à força numa arca de bichos com cólicas, que arrancaram às florestas natais das suas repartições, das suas mesas de bilhar e dos seus clubes recreativos, para os lançar, em nome de ideais veementes e imbecis, em dois anos de angústia, de insegurança e de morte. Acerca da veracidade desta última, de resto, não sobejavam dúvidas: grandes caixões repletos de féretros ocupavam uma parte do porão, e o jogo, um pouco macabro, consistia em tentar adivinhar, observando os rostos dos outros e o nosso próprio, os seus habitantes futuros. Aquele? Eu? Ambos? O major gordo lá ao fundo a conversar com o alferes de transmissões? Sempre que se examinam exageradamente as pessoas elas começam a adquirir, insensivelmente, não um aspecto familiar mas um perfil póstumo, que a nossa fantasia do desaparecimento delas dignifica. A simpatia, a amizade, um certa ternura até, tornam-se mais fáceis, a complacência surge sem custo, a idiotia ganha a sedução amável da ingenuidade. No fundo, claro, é a nossa própria morte que tememos na vivência da alheia e é em face dela e por ela que nos tornamos submissamente cobardes.
Não quer passar ao vodka? Enfrenta-se melhor o espectro da agonia com a língua e o estômago a arder, e esse tipo de álcool de lamparina que cheira a perfume da tia-avó possui a benéfica virtude de me incendiar a gastrite e, em consequência, subir o nível da coragem: nada como a azia para dissolver o medo ou antes, se preferir, para transformar o nosso passivo egoísmo habitual num estrebuchar impetuoso, não muito diverso na essência mas pelo menos mais activo: o segredo da famosa úlcera de Napoleão, percebe?, a chave que elucida Wagram e Austerlitz. E estes pires de coisas pequeninas, venenosas e salgadas, que o imperador nunca provou decerto, percorrerão os nossos intestinos como pedrinhas de soda cáustica capazes de nos atirarem, a favor da guinada de uma cólica, para as mais loucas ou doces aventuras. Quem sabe se acabaremos a noite a fazer amor um com o outro, furibundos como rinocerontes com dores de dentes, até a manhã aclarar lividamente os lençóis desfeitos pelas nossas marradas de desespero? Os vizinhos do andar de baixo cuidarão, atónitos, que trouxe para casa dois paquidermes que se entredevoram num concerto de guinchos de ódio e de parto, e quem sabe se tal novidade despertará neles humores há muito tempo adormecidos, e os leve a engancharem-se à maneira das peças desses puzzles japoneses impossíveis de separar, a não ser pela infinita paciência de um cirurgião ou a faca expedita de um capador definitivo. É capaz de levar o pequeno-almoço à cama a cheirar já a dentífrico Binaca e a optimismo? De assobiar pelos incisivos como os padeiros de antigamente, anjos enfarinhados de cesto ao ombro que substituíam as corujas cansadas dos guarda-nocturnos, e cuja recordação constitui uma das menos melancólicas fatias das minhas lembranças de infância? É capaz de amar? Desculpe, a pergunta é tola, todas as mulheres são capazes de amar e as que o não são amam-se a si próprias através dos outros, o que na prática, e pelo menos nos primeiros meses, é quase indistinguível do afecto genuíno. Não faça caso, o vinho segue o seu curso e daqui a nada peço-lhe para casar comigo: é o costume. Quando estou muito só ou bebi em excesso, um ramalhete de flores de cera de projectos conjugais desata a crescer em mim à maneira do bolor nos armários fechados, e torno-me pegajoso, vulnerável, piegas e totalmente débil; é o momento, aviso-a, de se retirar à sorrelfa com uma desculpa qualquer, de se meter no carro num suspiro de alívio, de telefonar depois do cabeleireiro às amigas a narrar-lhes entre risos as minhas propostas sem imaginação. No entanto e até lá, se não vê inconveniente, aproximo um pouco mais a minha cadeira e acompanho-a durante um copo ou dois». In António Lobo Antunes, Os Cus de Judas, Editora Dom Quixote, 2004, ISBN 978-972-202-759-5.

Cortesia DomQuixote/JDACT