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«(…) Talvez o súbito
desaparecimento das mulheres tivesse inquietado os homens que as protegiam,
pois Valéria entreviu os olhos dos acompanhantes a surgirem e logo desaparecerem
na porta da entrada do compartimento. E quando os dois homens regressaram à luz
do dia certamente ter-se-ão espantado com o milagre que acabara de suceder: a
chuva parara, depois de dias a fio de tormenta. O vento que soprava do
tenebroso mar, fronteira da terra que ali acabava, desvaneceu-se como que por
encanto divino. Parece que a velha deusa continua poderosa! Cala-te, Flaviano!
São superstições, idolatria, que tanto mal fazem a Deus… Vá, Arménio… Cuidado
com a língua! Não viste que até os elementos lhe obedecem… Do que estás a falar
é de outra coisa, meu caro… De outra coisa?! Arménio virou a face para o sul,
para onde as nuvens negras corriam para tão cedo não voltarem. Apenas faziam
verter dentro de si bátegas de raiva. Foi magia… A poderosa magia negra fez o
que acabaste de assistir! Flaviano olhou para todos os lados e encostou o
indicador em riste ao nariz, antes de pronunciar as últimas palavras, pois os
três vultos saíam, aliviados e sorridentes, do templo de pedra.
Cala-te com essa conversa! Senão,
serei eu a tomar as medidas… Arménio deixou um sorriso de escárnio e subiu para
o local onde deveria comandar o carro de volta à Villa Aseconia. O sacerdote
não parava de animar Priscila e Valéria, enquanto afagava, como se de uma fina
filigrana se tratasse, os passa-rédeas de bronze, uma peça que nunca os seus
olhos vislumbraram: de um centro robusto piramidal, sobreposto por um cavalo em
miniatura e decorado com motivos vegetais, sobressaíam duas serpentes, para
cada um dos lados, cujo cilíndrico e esguio corpo modelava as argolas por onde
passavam as rédeas dos animais. Trazes as serpentes de Ísis contigo!, sorriu,
continuando o afago. Ela atendeu aos vossos pedidos, senhora! Volta para o
sossego do lar e dá aconchego ao teu filho! Ele está à tua espera! O retorno
foi feito com mais tranquilidade. Cruzaram-se com viajantes que os saudavam efusivamente,
dando graças por, finalmente, chegar o bom tempo. Quando deixou a calçada imperial,
virando à esquerda junto a um marco miliário colocado no tempo de Caracala, a escassa
distância da mansio fervilhante
com vida de gente e animais, o coração de Priscila só procurava a resposta a
uma pergunta: como estaria o pequeno Prisciliano?
Bracara
Augusta (Braga)
Depois de cruzar o rio Minius,
restavam pouco mais de quarenta milhas para se alcançar as muralhas de Bracara
Augusta. Flaviano e Arménio saíram cedo para buscar Lucídio Danígico Tácito.
Aproveitaram as horas da vigília nocturna, ainda a lua madrugava a noite.
Assim, depois de passarem pelas mansiones
de Iria Flavia, Aquae Celenis, Turoqua, Burbida, Tude e Limia, alcançaram,
após alguns dias de viagem, as portas da capital. Era a hora sexta, ao final de
uma manhã fresca, mas de céu limpo.
Flaviano pediu ao companheiro
para passarem previamente pela parte de trás do fórum alegando precisar de
visitar um familiar adoentado que não visitava havia algum tempo e que Arménio
não conhecia. Demorou-se metade de uma hora e parecia satisfeito quando regressou
ao carro. Tomaram uma retemperadora refeição na domus de Lucídio e, quando viram pela primeira vez o seu
senhor, não deixaram de reparar nas nuvens negras que carregava no cenho. Lucídio
pensava nos acontecimentos que acabava de viver, mantendo, no entanto, a postura
nobre e o aspecto impecável e sedutor de deus grego, que alvoroçou muitos corações
femininos e ricos da Galécia. Mas a dama do seu coração era Priscila. Não a
conquistara sem esforço, pois, como esta desconfiasse da seriedade dos seus
intentos, vira-se obrigado a recorrer à ajuda de um tio influente na família.
E, coisa de que Priscila nem desconfiava, socorrera-se também de um velho
infundido da ancestral sabedoria dos harioli,
como no ocidente latino se chamavam aos incantadores, especialistas em toda a espécie de encantamentos,
sobretudo os amorosos. Deu por muito bem empregues as duas moedas de solidus aureus, cunhadas com o
rosto de Constantino, o Grande, que despendeu no negócio.
Por isso, enquanto trilhava com
ar grave e circunspecto as gastas calçadas graníticas que despediam Bracara
Augusta, o pensamento de Lucídio voava como um falcão para o seu ninho de
Aseconia, num turbilhão de emoções. Aguilhoava-o a saudade de Priscila e da
vida pacata da sua villa,
acompanhando os ciclos do tempo, das sementeiras às colheitas, com todas as festividades
que se celebravam de permeio, a deleitosa caça, as leituras de Petrarca e Juvenal
que deixara a meio. Porém, o que mais feria o coração de Lucídio, à medida que
cada milha se vencia em direção ao destino, era a notícia que Flaviano lhe
trouxera: o seu primogénito havia nascido há alguns dias e a mãe receava pela
sua saúde. Nada mais havia que fazer em Bracara Augusta!» In Alberto S. Santos, O segredo
de Compostela, Porto Editora, 2013, ISBN 978-972-068-096-9.
Cortesia
de PEditora/JDACT