segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

Estâncias Reunidas. Poesia. António Cândido Franco. «É só lembrança. Só saudade. Saudade branca. Luz humana. Humana luz de um nome»

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«Uma pedra quando se incendeia
transforma-se numa ideia.
Deixa de se ver.
Uma ideia é uma labareda
mas labareda íntima
invisível.
O nosso cérebro é um céu
onde estalam
pétalas de estrelas.
O céu é um tecto de ideias.
O cérebro uma abóbada de estrelas.
As ideias vão até ao húmus.
As estrelas até ao sangue.
Lembrar é estar cego
e imaginar o mundo.
Lembrar é amar.
E amar é compreender
as coisas que se imaginam.
Viver é ter luz.
Amar é tornar sensível
o invisível.
Esquecer é ver.
De noite nada vejo
porque nada existe.
Que dizer de Andrómeda?
Na escuridão
os olhos são inúteis.

De dia nada imagino.
Tudo é opaco.
À noite
só restam memórias.
Trajectos abstractos.
Rastilhos brancos.
Suores translatos.
Imaginações.
Estrelas.
Sonhos.
Tudo é transparente.
Não vejo por isso.
Visiono.
Ver é só receber imagens.
Visionar é já criá-las.
De noite
quando as coisas são memória
uma pedra aflora aos lábios.
Já não é pedra
mas só imagem.
Imagem interior.
No negrume da noite
a pedra perdeu matéria.
Coa-se nas margens.
Deposita-se na minha boca.
É só lembrança.
Só saudade.
Saudade branca.
Luz humana.
Humana luz de um nome».
Poema de António Cândido Franco, in ‘Estâncias Reunidas

In António Cândido Franco, Estâncias Reunidas, 1977-2002, Quasi edições, biblioteca Finita Melancolia, Vila Nova de Famalicão, 2002, ISBN 972-8632-64-9.

Cortesia de Quasi/JDACT