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Vê-se logo a quem sais o meu avô que continua nesta casa a quem tudo falta
apesar de igual, lá estão o relógio, as fotografias e ele desgostoso da gente
ocupando o sofá em que nenhum de nós se atreve a sentar Que triste este sítio a
palma a percorrer a testa e a desistir no bolso, as costas a pingarem até que
de súbito uma ordem zangada Não me aborreçam idiotas e a suspeita de lágrimas,
já no corredor assoava-se e tenho a certeza que Mãe referindo-se a um dos
retratos que eu ignorava qual fosse, que bandós, que vestido enfunado, um mulo
por companheiro e é tudo, só não compreendia a ausência de força e a suspeita
de lágrimas, lembro-me de um contador onde guardava facturas, no meio das facturas
cartas nem sequer atadas com uma fita numa caligrafia infantil, em papel de
colégio, a pedir brinquedos, lápis de cor, visitas, não Chega cá não uma
mulher, brinquedos, lápis de cor, visitas e após uma despedida cerimoniosa o
nome completo no fim comigo a pensar Se lhas mostrasse fingia não ver o mulo a
mancar debaixo da janela, ele sozinho e depois a minha avó (uma chávena num
pires) e depois o meu pai que galopa na vila a interrogar postigos ou persegue
na cozinha as empregadas que se recusam escondendo-se na tulha, o meu pai com
quem o feitor conversava de igual para igual, de boné na cabeça porque era o
meu avô quem mandava, não ele, o feitor ao qual a minha mãe obedecia Chega cá não
em casa claro, na arrecadação das sementes enquanto o meu pai na vila como se
apenas na vila conseguisse existir, reinando sobre a poeira dos mortos (há
momentos em que me pergunto se não estamos todos mortos salvo o meu irmão a
contemplar o relógio de que o esmalte dos números se descolou com o tempo) a
insistir Não me deixes não à minha mãe já, a mim que o espreitava sem coragem
de me aproximar e de repente ele Senhor como se o meu avô o pudesse ajudar ou
alguma vez tivesse ajudado e no entanto a única pessoa capaz de salvá-lo nem
que fosse pelo desdém e a troça, o relógio sobressaltou-se um instante e
continuou a mover os ponteiros numa ausência de números de modo que o tempo
cessara também, meia noite, setenta e seis da manhã, quarenta e oito da tarde,
o que importam as horas, em qualquer uma delas as folhas das oliveiras paradas
e nenhum arrepio no milho, uma chávena num pires a tremer e eu a tremer com
ela, pode ser que o meu pai desejando que eu trouxesse a caçadeira ou o sacho e
o ajudasse a acabar, escutei o cavalo que tentava libertar-se da argola e um
sapo do tamanho do homem que eu nunca seria a ferver na lagoa (o meu avô?) a
bomba do poço em que uma dificuldade de ferrugem corrigia a direcção do
silêncio, não o silêncio da ausência de ruído, uma mudez feita das vibrações
que se anulavam umas às outras de muita gente a falar e apenas reparamos nas
bocas que não têm e nos vapores da terra de que nasciam insectos, desci as
escadas para me afastar do meu pai (o que sinto por si?) evitando a sala onde a
chávena a explicar o quê, a comunicar o quê, a prevenir o quê, um velho surgiu
no alpendre Cuidado talvez não um velho, uma criatura que inventei (devo ter
inventado) visto que não possuía feições e se dissolveu no muro, o meu irmão na
cozinha e o meu avô a inquietar-se com ele, dava-lhe a comida, ajudava-o a
vestir-se, obrigava o feitor a tirar o boné O meu neto agitando-se de não o ver
receoso da lagoa, do poço Onde pára o rapaz? e o meu irmão a sacudi-lo com o
braço porque ninguém existia, somos personagens de moldura, sorrisos
confundidos com os estalos do soalho, não existimos e portanto o que digo não
existiu, que caçadeira, que sacho, que baús, que dedos escrevem isto, ficam os
tucanos da lagoa a caminho da fronteira e o meu avô a segurar o pescoço do meu
irmão não como segurava o pulso da minha mãe Chega cá em precauções comovidas Há-de
tomar conta disto tudo ou seja ausências e eu a perguntar-me qual o motivo de
não me escolher para tomar conta disto tudo dando ordens da minha moldura às
restantes molduras e elas para mim Senhor de boné contra o peito, o meu avô a
verificar o milho, o trigo e a cerca convencido que milho e trigo e cerca e
apenas uma extensão de ervas, moscas numa azinheira e um texugo a safar-se da
gente, se porventura me apontassem Esse infeliz sai ao pai quer dizer um dia
destes pega no cavalo que não lhe obedece que nem para os animais tem nervo e
some-se na vila, procurei o bicho na argola e dentro de mim o Cristo de feira
dobrado nos seus cravos Não me deixes o relógio que se imobilizava, galinhas
poupadas pelos cães a bicarem pedritas e a serra à deriva na distância, o meu
irmão debruçado para os limos do poço O meu único neto curioso das feições que
o fitavam curiosas também e o único neto fazendo-se, desfazendo-se e
refazendo-se na água de bochechas ora largas ora estreitas, orelhas que mudavam
de forma, o cabelo que não cessava de flutuar diferente do cabelo lá em cima
como se o meu irmão no poço apenas ou eu o houvesse empurrado Sou mais forte
que tu na esperança que o meu avô me escutasse e não escutava, o meu irmão que
devia ter empurrado (que empurrei?) que devia ter empurrado até que imagem
nenhuma, lodo tranquilo, calhaus, o poço sem serventia tirando quem se
interpunha entre o meu avô e eu (afoguei quem se interpunha entre o meu avô e
eu?) o cadáver de um borrego (não o dele, não os deles)». In António Lobo Antunes, O
Arquipélago da Insónia, Publicações dom Quixote, LeYa, 2008, ISBN
978-972-203-694-8.
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