domingo, 2 de dezembro de 2018

O Arquipélago da Insónia. António Lobo Antunes. «Não me deixes não à minha mãe já, a mim que o espreitava sem coragem de me aproximar e de repente ele Senhor como se o meu avô…»

jdact

«(…) Vê-se logo a quem sais o meu avô que continua nesta casa a quem tudo falta apesar de igual, lá estão o relógio, as fotografias e ele desgostoso da gente ocupando o sofá em que nenhum de nós se atreve a sentar Que triste este sítio a palma a percorrer a testa e a desistir no bolso, as costas a pingarem até que de súbito uma ordem zangada Não me aborreçam idiotas e a suspeita de lágrimas, já no corredor assoava-se e tenho a certeza que Mãe referindo-se a um dos retratos que eu ignorava qual fosse, que bandós, que vestido enfunado, um mulo por companheiro e é tudo, só não compreendia a ausência de força e a suspeita de lágrimas, lembro-me de um contador onde guardava facturas, no meio das facturas cartas nem sequer atadas com uma fita numa caligrafia infantil, em papel de colégio, a pedir brinquedos, lápis de cor, visitas, não Chega cá não uma mulher, brinquedos, lápis de cor, visitas e após uma despedida cerimoniosa o nome completo no fim comigo a pensar Se lhas mostrasse fingia não ver o mulo a mancar debaixo da janela, ele sozinho e depois a minha avó (uma chávena num pires) e depois o meu pai que galopa na vila a interrogar postigos ou persegue na cozinha as empregadas que se recusam escondendo-se na tulha, o meu pai com quem o feitor conversava de igual para igual, de boné na cabeça porque era o meu avô quem mandava, não ele, o feitor ao qual a minha mãe obedecia Chega cá não em casa claro, na arrecadação das sementes enquanto o meu pai na vila como se apenas na vila conseguisse existir, reinando sobre a poeira dos mortos (há momentos em que me pergunto se não estamos todos mortos salvo o meu irmão a contemplar o relógio de que o esmalte dos números se descolou com o tempo) a insistir Não me deixes não à minha mãe já, a mim que o espreitava sem coragem de me aproximar e de repente ele Senhor como se o meu avô o pudesse ajudar ou alguma vez tivesse ajudado e no entanto a única pessoa capaz de salvá-lo nem que fosse pelo desdém e a troça, o relógio sobressaltou-se um instante e continuou a mover os ponteiros numa ausência de números de modo que o tempo cessara também, meia noite, setenta e seis da manhã, quarenta e oito da tarde, o que importam as horas, em qualquer uma delas as folhas das oliveiras paradas e nenhum arrepio no milho, uma chávena num pires a tremer e eu a tremer com ela, pode ser que o meu pai desejando que eu trouxesse a caçadeira ou o sacho e o ajudasse a acabar, escutei o cavalo que tentava libertar-se da argola e um sapo do tamanho do homem que eu nunca seria a ferver na lagoa (o meu avô?) a bomba do poço em que uma dificuldade de ferrugem corrigia a direcção do silêncio, não o silêncio da ausência de ruído, uma mudez feita das vibrações que se anulavam umas às outras de muita gente a falar e apenas reparamos nas bocas que não têm e nos vapores da terra de que nasciam insectos, desci as escadas para me afastar do meu pai (o que sinto por si?) evitando a sala onde a chávena a explicar o quê, a comunicar o quê, a prevenir o quê, um velho surgiu no alpendre Cuidado talvez não um velho, uma criatura que inventei (devo ter inventado) visto que não possuía feições e se dissolveu no muro, o meu irmão na cozinha e o meu avô a inquietar-se com ele, dava-lhe a comida, ajudava-o a vestir-se, obrigava o feitor a tirar o boné O meu neto agitando-se de não o ver receoso da lagoa, do poço Onde pára o rapaz? e o meu irmão a sacudi-lo com o braço porque ninguém existia, somos personagens de moldura, sorrisos confundidos com os estalos do soalho, não existimos e portanto o que digo não existiu, que caçadeira, que sacho, que baús, que dedos escrevem isto, ficam os tucanos da lagoa a caminho da fronteira e o meu avô a segurar o pescoço do meu irmão não como segurava o pulso da minha mãe Chega cá em precauções comovidas Há-de tomar conta disto tudo ou seja ausências e eu a perguntar-me qual o motivo de não me escolher para tomar conta disto tudo dando ordens da minha moldura às restantes molduras e elas para mim Senhor de boné contra o peito, o meu avô a verificar o milho, o trigo e a cerca convencido que milho e trigo e cerca e apenas uma extensão de ervas, moscas numa azinheira e um texugo a safar-se da gente, se porventura me apontassem Esse infeliz sai ao pai quer dizer um dia destes pega no cavalo que não lhe obedece que nem para os animais tem nervo e some-se na vila, procurei o bicho na argola e dentro de mim o Cristo de feira dobrado nos seus cravos Não me deixes o relógio que se imobilizava, galinhas poupadas pelos cães a bicarem pedritas e a serra à deriva na distância, o meu irmão debruçado para os limos do poço O meu único neto curioso das feições que o fitavam curiosas também e o único neto fazendo-se, desfazendo-se e refazendo-se na água de bochechas ora largas ora estreitas, orelhas que mudavam de forma, o cabelo que não cessava de flutuar diferente do cabelo lá em cima como se o meu irmão no poço apenas ou eu o houvesse empurrado Sou mais forte que tu na esperança que o meu avô me escutasse e não escutava, o meu irmão que devia ter empurrado (que empurrei?) que devia ter empurrado até que imagem nenhuma, lodo tranquilo, calhaus, o poço sem serventia tirando quem se interpunha entre o meu avô e eu (afoguei quem se interpunha entre o meu avô e eu?) o cadáver de um borrego (não o dele, não os deles)». In António Lobo Antunes, O Arquipélago da Insónia, Publicações dom Quixote, LeYa, 2008, ISBN 978-972-203-694-8.
                    
Cortesia dePdQuixote/LeYa/JDACT