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Voltei como se ambos fossem, não nós, no dia do enterro espreitou o
cemitério da grade e sumiu-se de estribos a tilintarem nos ferros das correias,
o meu pai para a minha mãe defunta. Deita-te aqui comigo, disso tenho a certeza.
Deita-te aqui comigo não no tom em que Leva as tuas coisas para o andar de cima
amanhã uma voz de desamparo se calhar da febre, se calhar da fraqueza e mais
forte que a febre e a fraqueza Deita-te aqui comigo e ninguém ao seu lado, você
sozinho pai e todavia à procura, as mãos a segurarem o que julgava as mãos da
minha mãe ou as rédeas que não havia continuando a partir do cemitério a
caminho da vila onde os espectros moravam a atirar-lhes de chibata no ar Não se
escondam de mim sem que lhe respondessem porque não há quem se importe consigo,
não peça Não me deixes à camisola e às saias de uma rapariga que lhe obedecia
não por afeição, por medo e devia detestá-lo por medo igualmente, inerte à sua
beira a ouvir o baloiço das árvores na noite e da terra que subia e baixava
consoante as nuvens, o trote do cavalo rodeava a casa detendo-se no lugar em
que golpeavam os porcos dando ideia que o sangue do animal ou da minha mãe
quando nasci continuava a pingar no alguidar de forma que no momento em que o
meu pai Não me deixes a procurei na sua cara, você que sofria quando o meu avô Chega
cá a pegar na caçadeira, você à entrada do quarto, o meu avô a fixar os canos
enjoado de si Idiota e você a baixar a caçadeira e a ir-se embora vencido, você
a disparar sobre os tucanos e cada tucano um botão de cobre a fechar-lhe o
pescoço, cada tucano o dono do trigo e do milho e não se dava ao trabalho de
mandar os cães buscá-los, você, mesmo se a minha mãe com o meu avô Não me
deixes apesar da boca fechada, você idiota pai e nisto compreendi que não foram
os comunistas que deitaram fogo ao celeiro, tombaram o depósito da água e
mataram o meu avô, foi você e não a espingarda, o sacho, os camponeses e a
tropa e as empregadas da cozinha a fitarem-no quietos no instante em que Senhor
num tom que crescia sem que desse conta do tom a crescer, levantando o sacho Senhor
você que nunca Pai você sempre Senhor por submissão, por hábito, o meu avô a
troçá-lo Já não era sem tempo sem acreditar nele e a calar-se quando o sacho
lhe desfez um ombro, o segundo ombro, uma perna, a insistir Senhor ainda por
submissão e por hábito, o meu avô O que é isso? e o cavalo amarrado à argola a
afligir-se com o cheiro dos ossos, o meu avô de joelhos no pátio, o meu avô
deitado Idiota os tucanos em debandada, um dos camponeses Jesus a erva a
inclinar-se num murmúrio negro e o meu avô a apoucá-lo de cara desfeita Idiota com
um botão de cobre a fechar-lhe o pescoço, o meu pai sem largar o sacho num
último Senhor não já no tom que crescia, no tom do costume ou no estremecimento
de uma chávena num pires que conseguisse Senhor e se calasse assustada, os
dedos do meu avô fecharam-se e abriram-se e o meu pai beijou-os conforme os
beijava antes de sentar-se à mesa, lembro-me de me fitar e sou capaz de jurar
que não me via, via o Senhor teimava Senhor espantado com o silêncio a
contemplar o sacho e a largá-lo, o meu avô sem majestade alguma com um dos
olhos abertos e o outro não Idiota não Chega cá resignado, não montava um
cavalo como o meu pai, montava um mulo quase sem pêlo que coxeava de uma das
patas traseiras, tão idoso quanto ele e capaz de encontrar sozinho numa certeza
lenta as veredas do trigo, quem trabalhava para nós a retirar o chapéu Patrão sem
que o meu avô respondesse com um aceno ao menos, estacando junto à cerca a
chamar o feitor de boné no peito a escutá-lo enquanto o mulo ia girando as
orelhas alarmado com os sapos da lagoa e as cobras que se torciam no lodo
assobiando guizinhos, o meu pai pontapeou-o do estábulo Desaparece-me da frente
o mulo afastou-se na direcção dos juncos sabendo quem mandava agora e não o
tornámos a ver, há instantes em que se me afigura na eira, abro a janela e
enganei-me, se calhar os perdigueiros derrubaram-no e meia dúzia de cartilagens
nas silvas, o meu pai entre os baús Não me deixes para uma camisola e umas
saias de que o meu avô troçaria Trapos sem boca e a troçar das saias conforme
troçava do meu pai Nunca foste um homem a sério de mim». In António Lobo Antunes, O
Arquipélago da Insónia, Publicações dom Quixote, LeYa, 2008, ISBN
978-972-203-694-8.
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