quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

Claraboia. José Saramago. «Tia Amélia ergueu os olhos. As suas pupilas, habitualmente duras, tinham um brilho húmido. Cândida murmurou: é tão bonito!»

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«(…) Os últimos compassos da Marcha Fúnebre tombavam como violetas no túmulo do herói. Depois, uma pausa. Uma lágrima que desliza e morre. E, imediatamente, a vitalidade dionisíaca do Scherzo, ainda pesado da sombra do Hades, mas fruindo já a alegria da vida e da vitória. Um estremecimento correu sobre as cabeças curvadas. O círculo encantado da luz que descia do tecto unia as quatro mulheres na mesma fascinação. Os rostos graves tinham a expressão tensa dos que assistem à celebração de ritos misteriosos e impenetráveis. A música, com o seu poder hipnótico, levantava alçapões no espírito das mulheres. Não se fitavam. Tinham os olhos atentos ao trabalho, mas só as mãos estavam presentes. A música corria livremente no silêncio e o silêncio recebia-a nos seus lábios mudos. O tempo passou. A sinfonia, como um rio que desce da montanha, alaga a planície e se afunda no mar, acabou na profundidade do silêncio.
Adriana estendeu o braço e desligou a telefonia. Um estalido seco como o correr de uma fechadura. Terminara o mistério. Tia Amélia ergueu os olhos. As suas pupilas, habitualmente duras, tinham um brilho húmido. Cândida murmurou: é tão bonito! Não era eloquente a tímida e irresoluta Cândida, mas os seus lábios descorados tremiam, como tremem os das raparigas quando recebem o primeiro beijo de amor. Tia Amélia não ficou satisfeita com a classificação: bonito? Bonito é uma cantiguinha qualquer. Isto é... é... Hesitava. A palavra que queria pronunciar estava-lhe nos lábios, mas parecia-lhe que a profanaria dizendo-a. Há palavras que se retraem, que se recusam, porque significam de mais para os nossos ouvidos cansados de palavras. Amélia perdera um pouco da sua firmeza de articulação. Foi Adriana quem, numa voz que tremia, numa voz de segredo que se trai, murmurou: é belo, tia. Sim, Adriana. É assim mesmo.
Adriana baixou os olhos para a meia que estava passajando. Uma tarefa prosaica, como a de Isaura que caseava uma camisa, como a da mãe que estava pormenorizando as malhas de um crochet, como a de tia Amélia que somava as despesas do dia. Tarefas de mulheres feias e apagadas, tarefas de uma vida miudinha, de uma vida de janelas sem horizonte. Mas a música passara, a música companheira dos seus serões, visita diária da casa, consoladora e estimuladora, e agora podiam falar de beleza. Por que será que a palavra belo custa tanto a dizer?, perguntou Isaura, sorrindo. Não sei, respondeu a irmã. O certo é que custa. E, vendo bem, devia ser como qualquer outra. É fácil de dizer, são só quatro letras... Também não percebo. Tia Amélia, ainda chocada pela sua incapacidade de há pouco, quis esclarecer: percebo eu. É como a palavra Deus para os que creem. É uma palavra sagrada. Sim. Tia Amélia dizia sempre a palavra necessária. Mas impedia a discussão. Ficava tudo dito. O silêncio, um silêncio sem música, carregou a atmosfera. Cândida perguntou: não há mais nada?
Não. O resto do programa não interessa, respondeu Isaura. Adriana sonhava, a meia esquecida sobre o regaço. Lembrava-se da máscara de Beethoven que vira na montra de uma loja de músicas, havia muitos anos. Tinha ainda nos olhos aquela face larga e poderosa, que até na inexpressividade do gesso mostrava a marca do génio. Chorara um dia inteiro porque não tinha dinheiro para a comprar. Fora isso pouco tempo antes de perder o pai. A morte deste, a diminuição dos recursos económicos, a necessidade de deixar a antiga residência, e a máscara de Beethoven era hoje, mais do que então, um sonho impossível. Em que pensas tu, Adriana?, perguntou a irmã. Adriana sorriu e encolheu os ombros: tolices. Correu-te mal o dia? Não. É sempre a mesma coisa: facturas a receber, facturas a pagar, débitos e créditos de dinheiro que não é nosso... Riram ambas. Tia Amélia acabava as contas e pôs uma pergunta: não se fala por lá em aumentos? Adriana encolheu os ombros outra vez. Não gostava que lhe fizessem esta pergunta. Parecia-lhe que os outros achavam pouco o que ela ganhava e isso ofendia-a. Respondeu, com secura: dizem que não se faz negócio...» In José Saramago, Claraboia, 1953, Editorial Caminho, 2011, ISBN 978-972-212-441-6.
                                                                                                                             
Cortesia ECaminho/JDACT