terça-feira, 11 de dezembro de 2018

As Naus. António Lobo Antunes. «… anis, perfumes franceses, vermutes, uma dúzia de radiozinhos de pilhas japoneses? Você quer convencer-me que traz um cadáver aí?»

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«(…) Os morcegos que farejavam as lâmpadas, procurando as borboletas tropicais chegadas com os escravos da Guiné, submergiam-se por engano nos reflexos lilases das ondas de desmaio do Tejo. Automóveis de faróis nos mínimos, em que se revolviam namorados, apontavam ao chão as grelhas amuadas. O cheiro do esquife tornara-se a pouco e pouco tão insuportável quanto o do desertor no seu cepo, com pássaros poisados na crista da espinha e no que sobejava dos ombros e das nádegas, de modo que pensei Mal o frigorífico e o fogão arribem vendo-os a um cigano qualquer e compro ao velho um Jesus de metro e meio com embutidos e enfeites, já que a partir de certa idade vivemos a imaginar, a aperfeiçoar, a polir o teatro macabro das próprias exéquias, o sacristão, a família, as participações nas revistas, o interesse dos vizinhos, o número de ramos de flores e os litros das lágrimas. Pensei: nem que tenha de pagar para o chorarem. Pensei: nem que tenha de comprar óculos escuros e um lenço enorme de adeuses de emigrante para fingir que choro. Pensei: Nem que alugue cunhados nos mendigos que exageram a fome nos degraus das igrejas, e nisto o cabo, a seguir a tentar em vão um pontapé na seda instantânea de um gato, avançou em diagonal de lagosta a mudar a bandoleira da arma de uma omoplata para a outra:
O que é aquilo ali?, disse ele. Só então me dei conta de que para lá dos ralos e das cigarras das trevas cujo trino se aparenta ao zumbir das lantejoilas da insónia, para lá dos moluscos nas enxárcias e da harpa das cordas e da sua única nota sem cessar repetida, um grilo cantava: não dentro da noite, entenda-se; num barquito ancorado, uma dessas chatas de caçadores de limos e mariscos doentes, que navegam umas braças tripuladas por homens de calças enroladas munidos de camaroeiros e de baldes. De tempos a tempos uma barbatanazinha da água cintilava num pulo e evaporava-se de novo. As casas, duplicadas de pernas para o ar, subiam e desciam na direcção de Lisboa, enfeitadas de craveiros nos caixotes das varandas. O cabo tocou no féretro com a ponta da bota, a avaliar: esta porcaria pertence-lhe? De madrugada as locomotivas, quando chamam, mesmo distantes, dão a impressão de se encontrarem tão próximas que se podem apertar contra o peito. Os demais ruídos também. E o silêncio. E os odores. E as vozes que ciciam a quilómetros: tudo vizinho, nítido, transparente e frágil, de vidro.
Incluindo a ponte que atravessa o Tejo e os pirilampos dos camiões a vogar no tabuleiro. Ando à espera do paquete para a levar daqui, disse eu. Tenho lá o meu pai morto embrulhado num lençol. Em África, semeada de padrões, de destroços de caravela e de armaduras de conquistadores finados, os mochos plantavam-se no centro das picadas e deixavam que os carros os atropelassem, mochos de olhos amarelos como as barbatanas da água e os pirilampos dos camiões: viamo-los tarde demais, buzinávamos e um remoinho de penas cinzentas, mais cabelos do que penas, embatia no vidro e morria para trás de nós, a perder-se nas lavras de girassóis adormecidos por onde os burros do mato trotavam sem descanso. Em África, ao contrário daqui, o meu nariz palpava os odores e alegrava-se, as pernas conheciam os lugares de caminhar, as mãos aprendiam com facilidade os objectos, respirava-se um ar mais limpo do que panos de igreja, até a guerra civil dar um tiro no velho, me encafuar com o reformado e o maneta dos moinhos num porão de navio, e os perfumes e os rumores das trevas se me tornarem estrangeiros porque ignoro esta cidade, porque ignoro estas travessas e as suas sombras ilusórias, porque apenas soletro o porto e as traineiras, presentes de dia e ausentes de noite, sem contar os corvos e as gaivotas excitadas pelo relento do defunto, debicando o crucifixo à procura da carne podre oculta no túmulo de verniz. Um cadáver?, desconfiou o cabo. Um cadáver ou tabaco americano, nosso amigo? Gitanes, Marlboro, anis, perfumes franceses, vermutes, uma dúzia de radiozinhos de pilhas japoneses? Você quer convencer-me que traz um cadáver aí?» In António Lobo Antunes, As Naus, 1988, Publicações dom Quixote, LeYa, 2016, ISBN 978-972-205-995-4.

Cortesia de PdQuixote/LeYa/JDACT