jdact
«(…) Os morcegos que farejavam as
lâmpadas, procurando as borboletas tropicais chegadas com os escravos da Guiné,
submergiam-se por engano nos reflexos lilases das ondas de desmaio do Tejo.
Automóveis de faróis nos mínimos, em que se revolviam namorados, apontavam ao
chão as grelhas amuadas. O cheiro do esquife tornara-se a pouco e pouco tão
insuportável quanto o do desertor no seu cepo, com pássaros poisados na crista da
espinha e no que sobejava dos ombros e das nádegas, de modo que pensei Mal o
frigorífico e o fogão arribem vendo-os a um cigano qualquer e compro ao velho
um Jesus de metro e meio com embutidos e enfeites, já que a partir de certa
idade vivemos a imaginar, a aperfeiçoar, a polir o teatro macabro das próprias
exéquias, o sacristão, a família, as participações nas revistas, o interesse
dos vizinhos, o número de ramos de flores e os litros das lágrimas. Pensei: nem
que tenha de pagar para o chorarem. Pensei: nem que tenha de comprar óculos
escuros e um lenço enorme de adeuses de emigrante para fingir que choro.
Pensei: Nem que alugue cunhados nos mendigos que exageram a fome nos degraus
das igrejas, e nisto o cabo, a seguir a tentar em vão um pontapé na seda
instantânea de um gato, avançou em diagonal de lagosta a mudar a bandoleira da
arma de uma omoplata para a outra:
O que é aquilo ali?, disse ele. Só
então me dei conta de que para lá dos ralos e das cigarras das trevas cujo
trino se aparenta ao zumbir das lantejoilas da insónia, para lá dos moluscos
nas enxárcias e da harpa das cordas e da sua única nota sem cessar repetida, um
grilo cantava: não dentro da noite, entenda-se; num barquito ancorado, uma
dessas chatas de caçadores de limos e mariscos doentes, que navegam umas braças
tripuladas por homens de calças enroladas munidos de camaroeiros e de baldes.
De tempos a tempos uma barbatanazinha da água cintilava num pulo e evaporava-se
de novo. As casas, duplicadas de pernas para o ar, subiam e desciam na direcção
de Lisboa, enfeitadas de craveiros nos caixotes das varandas. O cabo tocou no
féretro com a ponta da bota, a avaliar: esta porcaria pertence-lhe? De
madrugada as locomotivas, quando chamam, mesmo distantes, dão a impressão de se
encontrarem tão próximas que se podem apertar contra o peito. Os demais ruídos
também. E o silêncio. E os odores. E as vozes que ciciam a quilómetros: tudo
vizinho, nítido, transparente e frágil, de vidro.
Incluindo a ponte que atravessa o
Tejo e os pirilampos dos camiões a vogar no tabuleiro. Ando à espera do paquete
para a levar daqui, disse eu. Tenho lá o meu pai morto embrulhado num lençol. Em
África, semeada de padrões, de destroços de caravela e de armaduras de
conquistadores finados, os mochos plantavam-se no centro das picadas e deixavam
que os carros os atropelassem, mochos de olhos amarelos como as barbatanas da
água e os pirilampos dos camiões: viamo-los tarde demais, buzinávamos e um remoinho
de penas cinzentas, mais cabelos do que penas, embatia no vidro e morria para trás
de nós, a perder-se nas lavras de girassóis adormecidos por onde os burros do
mato trotavam sem descanso. Em África, ao contrário daqui, o meu nariz palpava
os odores e alegrava-se, as pernas conheciam os lugares de caminhar, as mãos aprendiam
com facilidade os objectos, respirava-se um ar mais limpo do que panos de
igreja, até a guerra civil dar um tiro no velho, me encafuar com o reformado e
o maneta dos moinhos num porão de navio, e os perfumes e os rumores das trevas
se me tornarem estrangeiros porque ignoro esta cidade, porque ignoro estas
travessas e as suas sombras ilusórias, porque apenas soletro o porto e as
traineiras, presentes de dia e ausentes de noite, sem contar os corvos e as
gaivotas excitadas pelo relento do defunto, debicando o crucifixo à procura da
carne podre oculta no túmulo de verniz. Um cadáver?, desconfiou o cabo. Um
cadáver ou tabaco americano, nosso amigo? Gitanes, Marlboro, anis, perfumes
franceses, vermutes, uma dúzia de radiozinhos de pilhas japoneses? Você quer convencer-me
que traz um cadáver aí?» In António Lobo Antunes, As Naus, 1988,
Publicações dom Quixote, LeYa, 2016, ISBN 978-972-205-995-4.
Cortesia de PdQuixote/LeYa/JDACT