segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

Os Pecados da Rainha Santa Isabel. António Cândido Franco. «Na linha da vanguarda alçavam-se sobre todos os balsões reais com as armas riscadas de vermelho da confederação aragonesa-catalã. De seguida apresentava-se o segundo corpo, constituído pelas lanças das ordens militares»

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«(…) O cabo de guerra francês, Simão de Monforte, robustecido pelos sucessos, preparava-se então para assaltar os muros de Toulouse, centro da heresia, rica cidade de trinta ou quarenta mil habitantes, onde residia Raimundo M., conde de Toulouse e cunhado e vassalo do rei de Aragão. Quando o francês ouviu as palavras determinadas do mensageiro de Pedro II, riu com protérvia. Ele que venha bailar no que é seu e depois verá!
Ao saber da grosseria do cabeça da cruzada., o aragonês não titubeou. Mandou chamar os fronteiros e deu-lhes ordem de arregimentação. Correu por todo o reino o apelo dos fronteiros às tropas. Formaram na várzea de Saragoça os muitos corpos do exército de Aragão. Era a contra-cruzada em marcha.
Na frente postaram-se os homens de armas da guarda real. Pajens, infanções e ricos-homens aí mostravam a vivacidade e o desembaraço da cavalaria, com reluzentes bacinetes emplumados e muitos pendões e flâmulas a tremularem na carreira do vento. Na linha da vanguarda alçavam-se sobre todos os balsões reais com as armas riscadas de vermelho da confederação aragonesa-catalã.
De seguida apresentava-se o segundo corpo, constituído pelas lanças das ordens militares. Depois, vinham os corpos dos cavaleiros e besteiros e por fim os peões de lança, os contingentes das vilas e das cidades, os coudéis mouros com as suas companhias de fundibulários e os auxiliares, onde tanto entravam os azeméis, os vivandeiros, os curadores, os serventes e mais gente necessária à manutenção do exército como os foragidos dos condados occitanos fustigados pela cruzada e dispostos a combater. Eram quarenta mil homens que tiravam o pé da paz.
Pôs-se em movimento o exército com o rei à testa e foi atravessar os Pirenéus depois da cidade fortificada de Jaca, na esperança de alcançar num curto salto o Garona, subindo por ele sem esforço até às muralhas sitiadas da Tolosa occitana. Corria o fim da Primavera e os trilhos dos cumes, batidos pelo alto Sol do solstício, desimpedidos de neves e gelos, eram mais fáceis de percorrer que galeria de mar costeiro em dia de bonança e céu azul. No curso do Garona, já nas proximidades do grande centro onde por então se concentrava o nó da resistência à cruzada dos Franceses, deparou Pedro de Aragão com as muralhas de Muret.
O cabo de guerra francês tomara havia pouco a cidadela e depois de fazer pular os heréticos nas labaredas lá deixara como defensão uma grossa coluna de homens. Por aí, à ilharga do corpo central das operações, pensou o aragonês abrir a campanha de hostilidades contra os Franceses.
Brilhavam os doces e abundosos dias de Verão e a defesa de Muret não deu mostras de se intimidar com o assédio. Havia água e mantimentos com fartura. Viam-se nas seteiras os fortes bacinetes de ferro dos Franceses e nas ameias arrumavam-se as poderosas máquinas de arremesso de que dispunham. Um único homem se atrevia a expor o corpo nas ameias, exprobrando com palavras duras o exército sitiante.
Ide, senhores, ou um raio mais destrutivo do que aquele que destroçou os pagãos vos fuzilará para sempre, dizia, renitente e profético, afastando as abas negras do capeirão. Era Domingos Gusmão, o pregador que anos antes viera calcorrear os caminhos dos domínios do conde de Toulouse e do rei de Aragão, na esperança de debelar a heresia com a palavra destra, reconduzindo os cátaros aos dogmas romanos. Juntara-se depois ao legado papal e abade de Cister, quando este aparecera com os barões do rei de França munido duma ordem papal de limpeza. Aparecia agora com um feroz e obediente ao lado, a que afagava a caixa do crânio de quando em quando, apertando de seguida as orelhas atentas e espetadas nas mãos miúdas e cuidadas de estudioso». In António Cândido Franco, Os Pecados da Rainha Santa Isabel, Ésquilo, Lisboa, 2010, ISBN 978-989-809-289-2.

Cortesia de Ésquilo/JDACT