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«Trabalhar com nobreza, esperar
com sinceridade, enternecer-se com o homem, esta é a verdadeira filosofia».
In
Fernando Pessoa
«(…) O espelho, este e todos, porque sempre devolve uma aparência, está
protegido contra o homem, diante dele não somos mais que estarmos, ou termos
estado, como alguém que antes de partir para a guerra de mil novecentos e
catorze se admirou no uniforme que vestia, mais do que a si mesmo se olhou, sem
saber que neste espelho não tornará a olhar-se, também é isto a vaidade, o que
não tem duração. Assim é o espelho, suporta, mas, podendo ser, rejeita. Ricardo
Reis desviou os olhos, muda de lugar, vai, rejeitador ele, ou rejeitado,
virar-lhe as costas. Porventura rejeitador porque espelho também.
Deu oito horas o relógio do patamar, e mal o último eco se tinha
calado, ressoou debilmente um gongo invisível, só aqui perto se pode ouvi-lo,
de certeza não dão por ele os hóspedes dos andares altos, porém há que contar
com o peso da tradição, não vai ser só fingirem-se entrançados de vime em garrafões
quando já o vime não for usado. Ricardo Reis dobra o jornal, sobe ao quarto a
lavar as mãos, a corrigir o aspecto, volta logo, senta-se à mesa onde da
primeira vez comeu, e espera. Quem o visse, quem lhe seguisse os passos, assim
expedito, cuidaria haver ali muito apetite ou ser a pressa muita, que teria almoçado
este cedo e mal, ou comprou bilhete para o teatro. Ora, nós sabemos que almoçou
tarde, de ter comido pouco não o ouvimos queixar-se, e que não vai ao teatro
nem ao cinema irá, e com um tempo assim, de mais a piorar, só um tolo se
lembraria, ou um excêntrico, de ir passear as ruas da cidade. Ricardo Reis é somente
compositor de odes, não um excêntrico, ainda menos um tolo, menos ainda desta
aldeia, Então que pressa foi esta que me deu, se agora só é que vêm chegando as
pessoas para o jantar, o homem magro de luto, o gordo pacífico e de boa
digestão, estes outros que não vi ontem à noite, faltam as crianças mudas e os
pais delas, estariam de passagem, a partir de amanhã não virei sentar-me antes
das oito e meia, chegarei muito a tempo, aqui estou eu, ridículo, feito provinciano
que desceu à cidade e fica pela primeira vez em hotel. Comeu devagar a sopa,
mexendo muito a colher, depois dispersou o peixe no prato e debicou, em verdade
não tinha fome, e quando o criado lhe servia o segundo prato viu entrarem três
homens que o maitre guiou até à mesa onde, na véspera, haviam jantado a
rapariga da mão paralisada e o pai, Então não está cá, foram-se embora, pensou,
Ou jantam fora, contrapôs, só então admitiu o que já sabia mas fingira não
saber, e tanto que estivera registando a entrada de todos os hóspedes, em meio
alheamento, em dissimulação consigo mesmo, isto é, que descera cedo para ver a
rapariga, Porquê, até esta pergunta era fingimento, em primeiro lugar porque
certas perguntas são feitas apenas para tornar mais explícita a ausência de
resposta, em segundo lugar por ser simultaneamente verdadeira e falsa essa
outra resposta possível e oblíqua de haver motivo bastante de interesse, sem mais
profundas ou laterais razões, numa rapariga que tem a mão esquerda paralisada e
a afaga como a um animalzinho de estimação, mesmo não lhe servindo para nada,
ou por isso mesmo. Abreviou o jantar, pediu que lhe servissem o café, E um
conhaque, na sala de estar, maneira de entreter o tempo enquanto não pudesse,
agora sim, conscientemente decidido, perguntar ao gerente Salvador que pessoas
eram aquelas, o pai e a filha, sabe que me parece já os ter visto em outro
lugar, talvez no Rio de Janeiro, em Portugal não, claro está, porque então a
rapariga seria uma menina de poucos anos, tece e enreda Ricardo Reis esta malha
de aproximações, tanta investigação para averiguação tão pouca. Por enquanto
Salvador atende outros hóspedes, um que parte amanhã muito cedo e quer a conta,
outro que se queixa de não poder dormir com as pancadas duma persiana quando lhe
dá o vento, a todos atende Salvador com os seus modos delicados, o dente sujo,
o bigode fofo. O homem magro e lutuoso entrou na sala de estai para consultar
um jornal, e não demorou a sair, o gordo apareceu à porta, mordendo um palito,
hesitou diante do olhar frio de Ricardo Reis e retirou-se, de ombros caídos,
por lhe ter faltado a coragem de entrar, há renúncias assim, momentos de
extrema fraqueza moral que um homem não saberia explicar, sobretudo a si mesmo».
In
José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis, Editorial Caminho, Lisboa, 1995,
ISBN 972-21-0286-9
Cortesia de Caminho/JDACT