terça-feira, 18 de dezembro de 2018

O Ano da Morte de Ricardo Reis. José Saramago. «… o pai e a filha, sabe que me parece já os ter visto em outro lugar, talvez no Rio de Janeiro, em Portugal não, claro está, porque então a rapariga seria uma menina»

jdact

«Trabalhar com nobreza, esperar com sinceridade, enternecer-se com o homem, esta é a verdadeira filosofia». In Fernando Pessoa

«(…) O espelho, este e todos, porque sempre devolve uma aparência, está protegido contra o homem, diante dele não somos mais que estarmos, ou termos estado, como alguém que antes de partir para a guerra de mil novecentos e catorze se admirou no uniforme que vestia, mais do que a si mesmo se olhou, sem saber que neste espelho não tornará a olhar-se, também é isto a vaidade, o que não tem duração. Assim é o espelho, suporta, mas, podendo ser, rejeita. Ricardo Reis desviou os olhos, muda de lugar, vai, rejeitador ele, ou rejeitado, virar-lhe as costas. Porventura rejeitador porque espelho também.
Deu oito horas o relógio do patamar, e mal o último eco se tinha calado, ressoou debilmente um gongo invisível, só aqui perto se pode ouvi-lo, de certeza não dão por ele os hóspedes dos andares altos, porém há que contar com o peso da tradição, não vai ser só fingirem-se entrançados de vime em garrafões quando já o vime não for usado. Ricardo Reis dobra o jornal, sobe ao quarto a lavar as mãos, a corrigir o aspecto, volta logo, senta-se à mesa onde da primeira vez comeu, e espera. Quem o visse, quem lhe seguisse os passos, assim expedito, cuidaria haver ali muito apetite ou ser a pressa muita, que teria almoçado este cedo e mal, ou comprou bilhete para o teatro. Ora, nós sabemos que almoçou tarde, de ter comido pouco não o ouvimos queixar-se, e que não vai ao teatro nem ao cinema irá, e com um tempo assim, de mais a piorar, só um tolo se lembraria, ou um excêntrico, de ir passear as ruas da cidade. Ricardo Reis é somente compositor de odes, não um excêntrico, ainda menos um tolo, menos ainda desta aldeia, Então que pressa foi esta que me deu, se agora só é que vêm chegando as pessoas para o jantar, o homem magro de luto, o gordo pacífico e de boa digestão, estes outros que não vi ontem à noite, faltam as crianças mudas e os pais delas, estariam de passagem, a partir de amanhã não virei sentar-me antes das oito e meia, chegarei muito a tempo, aqui estou eu, ridículo, feito provinciano que desceu à cidade e fica pela primeira vez em hotel. Comeu devagar a sopa, mexendo muito a colher, depois dispersou o peixe no prato e debicou, em verdade não tinha fome, e quando o criado lhe servia o segundo prato viu entrarem três homens que o maitre guiou até à mesa onde, na véspera, haviam jantado a rapariga da mão paralisada e o pai, Então não está cá, foram-se embora, pensou, Ou jantam fora, contrapôs, só então admitiu o que já sabia mas fingira não saber, e tanto que estivera registando a entrada de todos os hóspedes, em meio alheamento, em dissimulação consigo mesmo, isto é, que descera cedo para ver a rapariga, Porquê, até esta pergunta era fingimento, em primeiro lugar porque certas perguntas são feitas apenas para tornar mais explícita a ausência de resposta, em segundo lugar por ser simultaneamente verdadeira e falsa essa outra resposta possível e oblíqua de haver motivo bastante de interesse, sem mais profundas ou laterais razões, numa rapariga que tem a mão esquerda paralisada e a afaga como a um animalzinho de estimação, mesmo não lhe servindo para nada, ou por isso mesmo. Abreviou o jantar, pediu que lhe servissem o café, E um conhaque, na sala de estar, maneira de entreter o tempo enquanto não pudesse, agora sim, conscientemente decidido, perguntar ao gerente Salvador que pessoas eram aquelas, o pai e a filha, sabe que me parece já os ter visto em outro lugar, talvez no Rio de Janeiro, em Portugal não, claro está, porque então a rapariga seria uma menina de poucos anos, tece e enreda Ricardo Reis esta malha de aproximações, tanta investigação para averiguação tão pouca. Por enquanto Salvador atende outros hóspedes, um que parte amanhã muito cedo e quer a conta, outro que se queixa de não poder dormir com as pancadas duma persiana quando lhe dá o vento, a todos atende Salvador com os seus modos delicados, o dente sujo, o bigode fofo. O homem magro e lutuoso entrou na sala de estai para consultar um jornal, e não demorou a sair, o gordo apareceu à porta, mordendo um palito, hesitou diante do olhar frio de Ricardo Reis e retirou-se, de ombros caídos, por lhe ter faltado a coragem de entrar, há renúncias assim, momentos de extrema fraqueza moral que um homem não saberia explicar, sobretudo a si mesmo». In José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis, Editorial Caminho, Lisboa, 1995, ISBN 972-21-0286-9

Cortesia de Caminho/JDACT