segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

Ambas as Mãos sobre o Corpo. Maria Teresa Horta. «E devagar distanciava-se de casa, percorrendo todas aquelas ruas, voltando depois para trás, revendo todos aqueles prédios, contendo todos aqueles prédios»

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A Imobilidade
«(…) Recua ainda e ainda. Recua. Logo em baixo a escada faz uma curva ligeira. Pensamos que ela vai cair. Sabemo-lo. Desce um degrau, outro e outro a recuar sempre e sempre. Não a avisamos, não gritamos e ela recua debaixo do olhar indiferente da outra. Será uma acusação? Os saltos dos seus sapatos brancos têm na pedra carcomida um ruído seco, em desequilíbrio precipitado. Não gritamos, não a avisamos e ela recua. Recua ainda e ainda, presa de um terror secular que não cala nos olhos.

Movimentos
Olha-os fixamente, por segundos. Na claridade extenuante do dia os contornos quase que se dissolvem e as diferenças de plano quase que desaparecem. Não existem saliências curvas, mas sim agudas, ásperas. Olha-os fixamente. O ódio confunde-se-lhe às vezes nos olhos.
Muito lentamente, a custo, fecha as pálpebras azuladas e geme baixo; um gemido contínuo, de dentes cerrados, os punhos a crisparem-se de cada lado do lençol e o rosto de uma palidez de morte. Mantém os braços abertos, a respiração presa, por vezes abandonada. Abandonada, por vezes como que oferecida. Tenta ainda fugir-lhe, arrancar-lhe as coxas entreabertas à pressão da sua língua, ao tacto do seu hálito, porém, mal ele parece libertá-la ela submete-se, ansiosa, apenas com uma ponta de rebeldia no movimento do corpo. E o gemido torna-se mais sincopado, contornado, entrecortado.
Volta-se defronte do espelho, apanha a cinta estendida na borda da cama. Vira-se: os seios vêem-se-lhe, queimados, negros de sol, no pequeno soutien de renda aberta. Parecem totalmente nus. Olha-os assim, nus. O calor alastrou pelo quarto, é um calor peganhento, feito de pequenos odores e de pequenas cores dissimuladas. Os dedos deslizam sobre a pele, descendo suavemente.
Corre ainda sem nunca se voltar. As mãos levantam o tecido pesado do fato para o manter afastado do chão. Mesmo assim arrasta consigo pequenas pedras e a poeira descolorida que se desloca brandamente perto dos arbustos; do buxo aparado há pouco. O olhar mantém-se fixo no labirinto geométrico do jardim. Há um gesto qualquer esboçado nos seus braços.
Mergulha a mão esquerda no aquário. As dez horas o calor iniciar-se-á pelo portão; alastrando-se no ferro do portão. Agora apenas treme de frio e quase grita; a outra mão paira perto da boca. E para quê? Os dedos ficam a pingar sobre o tapete a água tépida que haviam absorvido no aquário.
A mulher olha à roda a ver se alguma coisa falta: as jarras, as flores, ou as pratas? Desvia a cabeça do raio de sol que tropeça no móvel, no cristal da taça azul nesse mesmo móvel. As flores: debruçada, inquieta-se sobre elas. O olhar desinteressado, dá novamente volta à sala. Hirta na penumbra quente, escuta o tremendo silêncio da tarde.
Tropeça numa fuga detida por acaso. Encosta-se à parede lisa e inclina a cabeça junto ao frio branco da parede do corredor. Os joelhos vergam-se-lhe. Sente que a palidez lhe cresce num suor brando entre os seios soltos. E uma lentidão ou suor de cama.
Move os lábios como para acrescentar o silêncio. Os lábios, em silêncio na sala; a um canto da sala. Com um copo se possível amarfanhado nas mãos, olha-os. Tem de se mover entre eles na mesma sala: é um dever. Mas parece-lhe antes ser a sala que se move debaixo dos seus pés; pelo menos é essa sensação. E ela imóvel a deixar-se deslizar assim, apenas com um medo terrível de cair. Porém, pode tranquilizar-se: está tudo em ordem. Sorri. Um pobre sorriso usado em que ninguém acredita.
E devagar ela movia os braços e sorria, saía para a rua e andava devagar, demorando os passos, os braços pendentes, a boca seca, os olhos deslizando, os olhos roçando ao de leve as pessoas, contornando devagar as pessoas, os olhos retendo o tom mais agudo de um casaco ou o reflexo facetado de uma montra. Do pulso esquerdo caía-lhe a pulseira acobreada sobre a mão pendente junto à saia. E devagar distanciava-se de casa, percorrendo todas aquelas ruas, voltando depois para trás, revendo todos aqueles prédios, contendo todos aqueles prédios.
Era pequeno, preto, com uma espécie de crista. Ficava-se a olhá-lo durante muito tempo esquecida de tudo numa estranha amnésia consciente, quase que construída de propósito, os olhos fixos no aquário de vidro grosso, uma bola enorme, transparente, a um canto, quase encostado ao cinzeiro do lado esquerdo da parede perto da varanda mergulhada no sol. Fixava-o absorta e imóvel como se tudo dependesse daqueles movimentos circulares em redor do vidro ou do ruído quase imperceptível da água. Atenta, as mãos mergulhadas nos cabelos; apoiadas nos malares salientes; tinha nos olhos um ar perdido, absorto, ávido. Por isso mesmo ávido». In Maria Teresa Horta, Ambas as Mãos sobre o Corpo, Publicações Europa América, colecção Século XX, 1984, ISBN 978-972-100-090-2.

Cortesia de PEAmérica/JDACT