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«(…)
Eliezer, a porta que procuras sou eu!, grita. A voz é-me familiar, embora não seja
capaz de a identificar. Antes que consiga voltar-me para ver quem é, sinto umas
mãos empurrar-me para a frente. Caio e sou engolido pelas chamas. E, contudo, não
me queimo nelas. E não morro. Vou cambaleando através das labaredas até dar comigo
a voar num céu vermelho e magoado. Tenho o corpo revestido de penas prateadas. Yerushalayim
ergue-se diante de mim e voo como uma flecha na direcção da sua cidadela. A Torre
Faesal... Decido pousar-lhe no rebordo para avaliar as forças do inimigo, mas
ao aterrar aí... Graças a essa metamorfose da emoção que nos marca para sempre como
os filhos de Adam e Havvah, o vigoroso bater das minhas asas transforma-se nas batidas
aceleradas do coração de um rapazinho galileu que acorda para dar consigo no seu
quarto, nu, banhado em luar, perguntando-se de que maneira, e por que razão, se
transformou num deus alado.
Tenho de te falar agora da semana
que mudou a minha vida e me mandou para o exílio, aqui, em Rodes, e que te trouxe
para o seio da nossa família. Vê se consegues imaginar-me como o viúvo e pai de
dois filhos pequenos que eu era nessa altura, um homem que já celebrara trinta e
seis aniversários com a família e os amigos, e que ainda não tinha a certeza do
seu lugar no mundo... Uma tarde, acordo para me ver rodeado de uma amálgama de rostos
que me são desconhecidos, iluminados pela luz cor de açafrão de uma dúzia de lanternas.
O coração aperta-se-me com a visão de tantos estranhos, e o meu primeiro pensamento
é que tenho de apelar rapidamente à sua misericórdia. Mas não digo uma palavra;
sou um par de olhos que pestanejam, aterrados, à espera de pistas que me revelem
a natureza da minha atribulação.
Por mero hábito, digo para mim
próprio as palavras do Senhor ao profeta Yirmiyahu: não temas diante deles; porque
estou contigo para te livrar. Mas uns gritos roucos vindos de um sítio que não
consigo ver levam-me a contrair o rosto num esgar de medo, e apetece-me fugir. Em
breve me chegam igualmente aos ouvidos sussurros apressados, que não consigo
decifrar. As batidas insistentes e tensas dentro do meu peito fazem-me balançar
de um lado para o outro, e tenho a garganta seca como areia. Nas profundezas da
terra, é aí que os meus pensamentos em debandada parecem ter procurado refúgio.
Um jovem de longos cabelos ergue uma tocha e inclina-se para mim, estudando-me com
olhos húmidos e perturbados. Tem a túnica rasgada ao longo do colarinho.
Olho por cima do seu ombro e descubro
sombras que fazem lembrar borboletas a esvoaçar num tecto de pedra pálida. Os odores
pesados, doces e húmidos da mirra e do espicanardo enchem-me o peito ofegante.
Trouxeram-me para uma caverna, penso. Tenho de tentar descobrir o que querem de
mim antes de falar. Uma mulher pequena, de rosto tenso e olhos encovados e curiosos,
debruça-se sobre mim. Segura um pequeno quadrado de tecido sobre a boca e o nariz,
e perscruta-me como se tentasse resolver um cálculo complexo. Diz qualquer coisa
ininteligível, em latim, talvez, e ergue as sobrancelhas, numa tentativa de me levar
a responder-lhe. Pergunto-me porque não se dirige a mim em aramaico ou hebraico,
ou grego.
Deve
ser estrangeira. E os outros também. Contudo, estão quase todos vestidos à maneira
de Judeia. À minha esquerda chora um velho corcovado, com o seu talit pelos
ombros. Ao lado dele ergue-se uma mulher alta, de membros longos, dos seus quarenta
anos, diria eu, apertando contra o peito uma mantilha de lã, como quem receia
que ela lhe salte das mãos e fuja, se aliviar a pressão dos dedos. Tem o rosto devastado
de uma alma perdida que viu demasiado, e o colarinho do peplos rasgado. A
pequena cicatriz que ostenta no queixo, em forma de crescente, parece-me familiar».
In
Richard Zimler, O Evangelho Segundo Lázaro, Porto Editora, 2016, ISBN
978-972-004-854-7.
Cortesia
de PEditora/JDACT