domingo, 9 de dezembro de 2018

Manual para Mulheres de Limpeza. Lucia Berlin. «Durante meses, na lavandaria do Angel, o índio e eu não falámos, embora nos sentássemos juntos em cadeiras de plástico amarelas presas umas às outras»

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A lavandaria self-service do Angel
«Um índio alto e velho, com umas Levi's coçadas e um bonito cinto zuni (tribo de índios da América do Norte). O cabelo, branco e comprido, atado com fio cor de framboesa junto ao pescoço. O estranho é que, durante cerca de um ano, estávamos sempre na lavandaria do Angel ao mesmo tempo. Mas não às mesmas horas. Isto é, por vezes eu ia às sete numa segunda-feira, ou às seis e meia da tarde numa sexta-feira, e ele já lá estava.
Com a Sr.a Armitage tinha sido diferente, embora também ela fosse velha. Fora em Nova Iorque, na lavandaria San Juan, na 15th Street. Porto-riquenhos. Espuma a transbordar para o chão. Eu era uma jovem mãe, nessa altura, e lavava fraldas às quintas-feiras de manhã. Ela vivia por cima de mim, no 4-C. Certa vez, na lavandaria, deu-me uma chave, e eu aceitei-a. Disse-me que, se não a visse às quintas-feiras, era porque estaria morta e que fizesse o favor de ir à procura do seu corpo. Era uma coisa horrível de se pedir a alguém; além do mais, isso obrigava-me a ir tratar da minha roupa às quintas-feiras. Ela morreu numa segunda-feira, e eu nunca mais voltei à San Juan. O porteiro encontrou-a. Não sei como.
Durante meses, na lavandaria do Angel, o índio e eu não falámos, embora nos sentássemos juntos em cadeiras de plástico amarelas presas umas às outras, como nos aeroportos. Elas deslizavam no linóleo rasgado e o som arrepiava os dentes. Ele costumava ficar ali sentado a bebericar Jim Beam (marca de bourbon), a olhar para as minhas mãos. Não directamente, mas pelo espelho à nossa frente, por cima das máquinas de lavar Speed Queen. Ao início, não me incomodou. Um velho índio a olhar fixamente para as minhas mãos pelo espelho sujo, entre Engoma-se 1,50$ a dúz, amarelecidos e preces de serenidade em cor de laranja-fluorescente. Deus, Concede-me a Serenidade, para Aceitar as Coisas que não posso Mudar. Mas, depois, comecei a perguntar-me se ele teria uma tara com mãos. Deixava-me nervosa, ele a ver-me fumar, a assoar-me, a folhear velhas revistas com muitos anos. Lady Bird Johnson (alcunha dada à primeira-dama dos USA, Claudia Johnson, casada com Lyndon B. Johnson, presidente entre 1963 e 1969) a descer os rápidos.
Por fim, ele apanhou-me a olhar fixamente para as minhas mãos. Vi-o quase a sorrir por me ter apanhado a olhar fixamente para as minhas próprias mãos. Pela primeira vez, os nossos olhares cruzaram-se no espelho, por baixo do não sobrecarregue as máquinas. Havia pânico no meu olhar. Olhei para os meus próprios olhos e, depois, para baixo, para as minhas mãos. Manchas de velhice horríveis, duas cicatrizes. Mãos não índias, nervosas, solitárias. Pude ver crianças e homens e jardins nas minhas mãos.
As suas mãos naquele dia (no dia em que reparei nas minhas) estavam pousadas sobre cada uma das suas tensas coxas azuis. Na maior parte do tempo, tremiam bastante, e ele deixava-as agitarem-se no seu colo, mas, naquele dia, mantinha-as quietas. O esforço para não as deixar tremer fez com que os nós dos seus dedos de terracota ficassem brancos.
A única vez que falei com a Sr.a Armitage fora da lavandaria foi quando a sua retrete transbordou e causou infiltrações no candelabro do meu piso. As luzes ainda estavam acesas, com a água a salpicar arcos-íris à sua volta. Ela agarrou-me o braço com a mão fria e moribunda e disse: é um milagre, não é? Chamava-se Tony. Era um apache Jicarilla, do Norte. Um dia, não o vi, mas soube que era a sua bela mão no meu ombro. Deu-me três moedas. Não percebi, quase disse obrigada, mas depois vi que ele estava com tantos tremores que não conseguia usar as máquinas. Sóbrio já é difícil. É preciso girar a seta com uma mão, pôr a moeda com a outra, empurrar o êmbolo para baixo e, depois, voltar a girar a seta para trás, para pôr a próxima moeda.
Ele voltou mais tarde, bêbado, precisamente na altura em que as suas roupas começavam a ficar mais leves e secas. Não conseguiu abrir a porta, apagou-se sobre a cadeira amarela. As minhas roupas já tinham secado, estava a dobrá-las. Eu e o Angel pusemos o Tony no chão da sala de engomar. Quente. O Angel é o responsável por todas as preces e lemas dos AA. Não penses e não bebas. Ele pôs uma meia molhada e fria na testa do Tony e ajoelhou-se ao seu lado. Irmão, acredita em mim... Já estive nesse sítio..., nessa mesma sarjeta onde estás agora. Sei perfeitamente como te sentes». In Lucia Berlin, Manual para Mulheres de Limpeza, 1977, …, 1999, Penguin Random House, 2016, Alfaguara, 2018, ISBN 978-989-665-065-0.

Cortesia de Alfaguara/JDACT