Cortesia
de wikipedia e jdact
Norte de África
«(…) Sem dizer nada, Mirina a
puxou mais para perto. Ela parecia feliz, continuou Lilli. Quis me abraçar, mas
aí viu você e acho que teve medo de você ficar chateada com ela por me levar
embora... então não levou. As duas passaram um tempo deitadas em silêncio. Sua
antiga vida agora parecia muito distante. No entanto, a lembrança dos amigos e
pessoas queridas que tinham perdido ainda era forte o suficiente para fazer
ambas engasgarem e se calarem, assim como Mirina sabia que continuaria a sentir
aquele fedor horrível da doença e da morte para sempre. Depois de sair do
povoado, as duas haviam passado muito mal, com tremores e convulsões. Mirina
tivera certeza de que iriam morrer; na verdade, quase se alegrara com isso. No
entanto, aos poucos havia começado a melhorar, e Lilli também, embora a febre
da irmã tivesse durado o suficiente para prejudicar os seus olhos. Durante várias
terríveis manhãs, a menina havia acordado do seu sono agitado vendo cada vez
menos, até por fim perder completamente a visão. O dia já vai raiar?,
perguntara Lilli no último dia, olhando para o sol sem nada ver. Não falta
muito, não, respondera Mirina com um sussurro, abraçando a irmã e soluçando
enquanto a beijava repetidamente e a verdade dolorosa dava um nó na sua
garganta.
Mas as duas continuavam vivas.
Haviam sobrevivido à pestilência e agora também ao deserto. Dali em diante, as
coisas só poderiam melhorar. Mirina recusava-se a pensar de outra forma. Tem
certeza de que..., começou a perguntar Lilli, como fazia todas as noites. Só
que dessa vez não terminou a frase, apenas mordeu o lábio e virou o rosto. Ambas
sabiam que só haveria resposta para a grande questão de Lilli quando chegassem à
cidade. Será que a Deusa da Lua conseguiria reverter os danos da febre e fazê-la
recuperar a visão? Só a Deusa sabia. De uma coisa eu tenho certeza, falou
Mirina, polindo a pulseira da mãe na túnica. Por baixo do insistente resíduo de
fuligem, a serpente com cabeça de chacal de que ela tão bem se lembrava a
encarava com os olhos enegrecidos. Mãe sentiria orgulho se visse agora. Lilli
ergueu o rosto com uma expressão intrigada na direcção da irmã. Não acha que
ela ficaria zangada comigo por estar inútil? Mirina a puxou mais para junto de
si.
Inúteis
são agricultores que não plantam e pastores que não pastoreiam. Lembre-se que é
uma irmã. Uma irmã não precisa de olhos para ser útil, só de um sorriso e de um
coração valoroso. Lilli deu um suspiro pesado e os seus ombros afundaram quando
ela se recostou na bolsa das duas. Eu sou só sua meia-irmã. Talvez por isso não
tenha a mesma coragem. Se o meu pai fosse o mesmo que o seu, talvez eu também
tivesse um coração de caçadora. Shh! Os pais vêm e vão, mas a Terra permanece a
mesma. Assim como não existe meio coração, não existe meia-irmã. É, pode ser,
murmurou Lilli. Mas eu ainda não tenho certeza se um dia vou conseguir voltar a
sorrir. Bom, pois eu tenho, retrucou Mirina, pousando o queixo sobre a cabeça
da irmã. Lembre-se: quem enfrenta o leão se torna o leão. Nós vamos enfrentá-lo
e vamos voltar a sorrir. Mas leões não sabem sorrir, balbuciou Lilli, abraçando
a bolsa. Mirina deu um rugido e começou a mordiscar o pescoço da menina até as duas
rirem. Então nós vamos ensinar». In Anne Fortier, A Irmandade Perdida, 2014, Editora
Arqueiro, 2015, ISBN 978-858-041-543-0.
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