terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Novas Cartas Portuguesas. Maria Barreno, Maria Horta, Maria Costa. «… eu não a bebi, mas vi quem a bebeu e não morreu por a ter bebido..., para o mar ser limpo é preciso que os rios o sejam antes»

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Segunda Carta III
 (…) Mas nós também ainda não. Estamos alegres, mas de forma alguma. Também ainda não sabemos o que inventar; como abandonar essa definição pelos limites, como inventar amor que reconheça todos os abismos. De cada uma sim, estamos certas. Cada uma sabe a medida do seu uso e da sua defesa, e aí nos entendemos. Eu disse o que interessa é o exercício, o que nos resta, agora, vingança ao mundo, até novo tempo, e vocês respondem esperando alguém, seu exercício, e por isso bem a amando, a cidade, e vos desfazemos então em nosso sustento, senhores de cidadelas. E nos contamos os homens e o que já feito, fazemo-nos laudas e bilhetinhos, como o dissemos. E bem sentimos, que para além disso saltamos juntas, isso acertámos, para a profundeza que ainda não criámos nem temos como certo podermos criar.
Não sei quem excluímos, quem matámos. Mas o salto começou, com o cheiro a mosto, o falar de pedra e o raspar de vidro. Fizemos a ara, a taça, o vinho, olhamo-nos de soslaio e perguntamos quem imolamos, quem vencemos, quem usamos? Mas já matámos, já excluímos; sugámos-lhe o sangue, o jogo e as armas. E não por aventura, a que é necessário, depois, dar objectivo; afastemo-nos, pois, desta sensação de mau sonho, deste sobressalto de quem acorda depois de luta no escuro em legítima defesa e diz e agora, o que fazemos aos cadáveres? Há os que morrem por boas intenções, e os que morrem por necessidade. Foi dita a gravidade desta empresa, luta de vida, o que em nosso tempo e nosso sítio não é tido por legítimo, nem por defesa». In 23/3/71

Mensagem de invenção de Mariana Alcoforado
«Senhora de mim vos sou
corpo por vós bem talhado
que recompensa vos dou
trocando nudez por fato

figura de meu lamento
choro de muito aparato

cartas escritas porque entendo
que me perco e me desprendo
se não vos culpo ou vos mato

Sofrimento que dedico
à justa mágoa de mim

Pois a razão desconheço

Senhor que de vós não lembro
já o fim
nem o começo»
In 23/3/71

Terceira Carta III
Qu’est-ce que je deviendrai, et qu’est ce que vous voulez que je fasse? Je me trouve bien éloignée de tout ce que j’avais prévu...

... eu muitos peiches pesquei naquêl rio e nesse tempo a água era lisa ela se podia mesmo beber, eu não a bebi, mas vi quem a bebeu e não morreu por a ter bebido..., para o mar ser limpo é preciso que os rios o sejam antes.
Esta carta do emigrado canadiano remerciante veio-me às mãos e aqui no-la trago. Como se ora tudo isto fosse o coito, a coita, a coifa, onde todos os rios afluem para um mar a limpar, nós poluídas pelos dias e os ditos, rejeitadas de tantos lugares ou deixadas para trás pelos que emigram ou nos fazem de flores, qui s’y frotte s’y pique. Era o meu trági-comi-lema, frágil cantilena, para este ano em que revolvi as circunstâncias sem saber a que constância minha (de dança vocativa na praça / hasta que publica e outra) obedecendo.
Um dos que nos sabe (duvida) já disse que podíamos morrer disto. E outro disse três monstros como vocês! E outro apaziguou de pombas. Eu acho que estamos só fazendo a mãe do rio (ó Agustina só e só) que não nos tolha a mão e o corpo roto, que/quem amar agora o que fazemos não seja dividido a dividir-nos. Esta é a pobreza e a castidade. Hão-de de susto dizer-nos até lésbicas, porque sobre este corpo (seis seios da novela também rindo) não se podem pousar mãos a oferecer ou pedir prendas. Frágil e fraco é o sexo do homem se divide sua mãe de si mesma. Amai-nos umas às outras como nós nos amamos órfãs do mesmo bem, quem nos consinta a paz e a aventura, a água lisa e o amor industrioso, pão e laranja limpos e a feijoca de fráguas, porque na terra que Deus criou, nós somos todas iguais, e isto nos dá a coragem de fazer assim uma aventura! In 24/3/71» In Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta, Maria Velho Costa, Novas Cartas Portuguesas, 1972, edição anotada, Publicações dom Quixote, 1998, 2010, ISBN 978-972-204-011-2.

Cortesia PdQuixote/JDACT