Cortesia de wikipedia e
jdact
«(…) Anseio pelo que é alvo e puro, sem nenhuma
memória, condenada eu a adivinhar o futuro. Naquele instante, no entanto,
conseguindo iludir o conhecimento do tempo que ainda há-de vir, adiantado pelas
alucinações que chegam de madrugada. Mas quando ela me viu recuei, consciente e expectante
diante da imagem do meu próprio avesso, entregue já à sua fraqueza dúctil e
nela me reconhecendo: meu outro mesmo lado, sol da minha sombra, lua do meu
negrume, rosa-do-mato ou flor de açucena. Criança delicada e suspeitosa com
quem logo me senti irmanada sem nunca nos termos chegado a tocar, apesar do
encontro da ponta dos nossos dedos. Sem entender porquê retrocedi, cada passo
para trás contado e medido sem pressa. Foi então que ela andou até onde eu
estava, mãos alongadas na direcção das minhas, estendidas em meu amparo, voz
breve a perguntar-me: como te chamas? E eu da minha antiga mudez atirei fora o
susto e respondi-lhe de rouquidão na fala entumescida, a atropelar-se na
garganta apertada: Lilias Fraser, e tu?
Talvez ela tenha hesitado uns segundos,
demorando um tudo-nada a resposta: Leonor Almeida. E coisa alguma mais dissemos
pois, sem outro motivo aparente que não fosse o destino, nos completávamos.
Sabendo eu a partir desse momento tudo o resto, e por isso pude sem medo
cumprir a vontade de reparar nos seus olhos de um azul de cinza ardente, onde a
encontrei intacta, incontaminada do mal, embora marcada pelo fechamento de
janelas, de portas e grades
à sua volta, levada que será em breve por acontecimentos tão devastadores e
terríveis que a irão marcar para sempre, afastá-la da vida tal como hoje a
conhece e entende.
A bruxa tem os cristais guardados nos bolsos fundos da
saia, deles sentindo na carne a brasa gelada e a cintilação cega, que lhe
chameja o corpo. Inspira com precaução o ar, toma-lhe o gosto a salitre,
fareja-o, nele detectando o enxofre, o húmus contaminado pelo revolvimento que
em breve há-de vir das entranhas das terras, das águas sulfurosas e das pedras
que ali já fez secar as fontes. Depois de se ter debatido noites seguidas com
os próprios poderes e presságios, delirando com a febre alta que provoca
convulsões e lhe repuxa as feições, a bruxa nas suas alucinações viu ruir
Lisboa, escutou o urro imenso subido das entranhas da terra, os gritos
aterrados das pessoas em fuga pelas ruas em chamas, ouviu os estertores das que
ficaram estendidas, esmagadas debaixo do estuque e das lajes, dos mármores dos
palácios, dos altares e santos das igrejas, deu conta do pavor daqueles que
eram tragados pelas fendas enormes que se abriam no chão a engolir tudo, casas
e carros, e também aqueles que tombavam,
tropeçando nos escombros.
Sentiu o estômago revoltado pelo
intenso cheiro a vulcão recolhido que andava no ar espesso de fumo acre, a
fundo lodoso do rio, a chuva envenenada, ao sal ácido das ondas de um mar
revoltoso. Procurou em vão defender-se das queimaduras das cinzas que tombavam
do alto, como se fossem neve parda, escaldante. E quando finalmente voltou a
si, aterrada, reuniu os poucos haveres numa trouxa, guardou dentro dela,
também, as cartas de adivinhar futuros, os cristais nos bolsos da saia imunda,
embrulhou-se na manta de lã cardada, abandonou a cabana de terra batida e saiu
da cidade, entregando-se ao destino que a guiou, ainda cambaleante, pelos
caminhos do Campo Pequeno. Com a boca crestada de sede, solta os emaranhados e
enriçados cabelos ruivos, liberta-os do lenço de riscado preto com o qual limpa
o suor do rosto afogueado pela inusitada quentura daquele princípio de tarde de
28 de Outubro de 1755, e só nesse momento repara na carruagem que acaba de sair
pelo portão encimado pelo brasão dos marqueses de Távora. O carro puxado por
dois cavalos brancos de crinas entrançadas vai ainda a passo lento quando se
cruza com ela, parada à beira da estrada». In
Maria Teresa Horta, As Luzes de Leonor, Publicações dom Quixote, 2011, Prémio
D. Dinis I, ISBN 978-972-204-733-3.
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de PdQuixote/JDACT