domingo, 2 de dezembro de 2018

Os Filipes. António Borges Coelho. «Os fidalgos pensaram: vinha da parte de Filipe. João Betencourt, capitão da gente de cavalo, saiu da Casa dos Jesuítas com a bandeira levantada e percorreu as ruas»

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Filipe I (II) em Lisboa
«(…) No Cais da Pedra, os mercadores flamengos ergueram à sua custa um portal grandioso. No cimo estavam pintados quatro leões e logo abaixo um retrato do rei Filipe I, tirado pelo natural. Na ilharga, da banda direita, um gigante com o mundo na mão. Uma rua artificial seguia do cais até à Porta da Ribeira, ladeada, de uma e outra parte, por esteios onde estavam representadas as figuras dos reis da Índia, tributários de Portugal.
Da Ribeira à Sé seguiam-se os arcos: o de São Jorge, o dos ourives da prata, o dos barbeiros. O arco da Porta do Ferro, feito pelos cerieiros, era todo lavrado em cera com invenções de árvores e frutos. Na Rua Nova, aos Barreteiros, outro arco; e defronte do Chafariz, um portal com muitos enigmas. Arco da Moeda, arco das Fangas da Farinha, da Tanoaria, dos ourives do ouro. A porta da igreja de Santo António fora lavrada e dourada de novo e a porta da Sé estava bem ornada de pinturas. Os portais mostravam retábulos em louvor de Filipe I.
No Cais da Pedra, no portal dos flamengos, o presidente do Senado entregou ao rei as chaves da cidade. Devolveu-as e, a cavalo, deu as mãos a beijar aos vereadores e procuradores dos mesteres. Pediram-lhe a confirmação dos privilégios e das liberdades de Portugal. Respondeu que era contente de tudo outorgar. A cavalo, seguido a pé pelos fidalgos, chegou à porta da Ribeira onde lhe fizeram a fala. E prosseguiu até à Sé no meio de danças e folias. Voltou pela Rua Nova, a Calcetaria, a Porta da Oura até aos Paços da Ribeira. Chegou quase ao pôr-do-sol. Quanto ele ia alegre e contente, juntamente com os que lhe entregaram o reino e se com ele foram botar, tanto o povo lastimava, com bem de lágrimas, a dor que tinha e mostrava ter em sentimento de o verem a ele, rei, e não a quem desejaram, escreve o antoniano Pero Roiz Soares.
Depois de assentado nos Paços, começaram logo a fazer cruéis execuções nos portugueses que seguiram o senhor dom António, açoutando uns, enforcando outros, degredando muitos para as galés, não guardando decoro a ninguém porque frades, clérigos, leigos, todos iam por um teor remando seus remos nas galés. Em 31 de Janeiro de 1582, em carta a Gabriel Zayas, secretário de Filipe I, Jerónimo Corterreal escreüa: a gente vulgar está cheia de escândalo por estarem ainda correndo sangue as chagas e dores passadas, assim das mortes dos maridos, mulheres e meninos, como das perdas e roubos das fazendas, que se estimam, só no burgo de Lisboa e no circuito do seu termo, em cinco contos de ouro.

Conquista dos Açores
Batalha da Salga ou da Praia da Vitória
Filipe I não dormia tranquilo no Paço da Ribeira. Senhoreava o continente português mas abandeira de dom António tremulava na ilha Terceira e noutras ilhas dos Açores. E de França saía uma armada em apoio do rei Prior do Crato. Pelo seu lado, a rainha Isabel de Inglaterra não tardaria a entrar no conflito. As ilhas tomaram o partido de dom António logo em Junho de 1580 mas, em Janeiro de 1581, por acção do bispo Pedro Castilho e pela pregação dos Jesuítas, a ilha de São Miguel tomou voz por Filipe I. Já antes, em 29 de Setembro de 1580, os poderosos da ilha Terceira, a ilha mais povoada, tinham tentado proclamar o rei espanhol. No porto de Angra entrou uma nau castelhana. Os fidalgos pensaram: vinha da parte de Filipe. João Betencourt, capitão da gente de cavalo, saiu da Casa dos Jesuítas com a bandeira levantada e percorreu as ruas: viva el-rei Filipe! Viva! E quem o contrário disser morra.
O corregedor dos Açores, Cipriano Figueiredo, veio-lhe ao caminho: que coisa é esta senhor João Betencourt? Venho pedir a Vossa Senhoria que não mande atirar da fortaleza àquela nau, que é d'el-rei Filipe. O povo começou a juntar-se: mata, mata este traidor. Prenderam o Betencourt e alguns cidadãos de nome e principais da cidade. Outros cavalgaram para as suas quintas e ficaram a monte». In António Borges Coelho, Os Filipes, Editorial Caminho, 2015, ISBN 978-972-212-740-0.

Cortesia de Caminho/JDACT