Filipe
I (II) em Lisboa
«(…) No Cais da Pedra, os
mercadores flamengos ergueram à sua custa um portal grandioso. No cimo estavam pintados
quatro leões e logo abaixo um retrato do rei Filipe I, tirado pelo natural. Na ilharga,
da banda direita, um gigante com o mundo na mão. Uma rua artificial seguia do
cais até à Porta da Ribeira, ladeada, de uma e outra parte, por esteios onde
estavam representadas as figuras dos reis da Índia, tributários de Portugal.
Da Ribeira à Sé seguiam-se os
arcos: o de São Jorge, o dos ourives da prata, o dos barbeiros. O arco da Porta
do Ferro, feito pelos cerieiros, era todo lavrado em cera com invenções de
árvores e frutos. Na Rua Nova, aos Barreteiros, outro arco; e defronte do Chafariz,
um portal com muitos enigmas. Arco da Moeda, arco das Fangas da Farinha, da Tanoaria,
dos ourives do ouro. A porta da igreja de Santo António fora lavrada e dourada
de novo e a porta da Sé estava bem ornada de pinturas. Os portais mostravam retábulos
em louvor de Filipe I.
No Cais da Pedra, no portal dos
flamengos, o presidente do Senado entregou ao rei as chaves da cidade. Devolveu-as
e, a cavalo, deu as mãos a beijar aos vereadores e procuradores dos mesteres. Pediram-lhe
a confirmação dos privilégios e das liberdades de Portugal. Respondeu que era
contente de tudo outorgar. A cavalo, seguido a pé pelos fidalgos, chegou à porta
da Ribeira onde lhe fizeram a fala. E prosseguiu até à Sé no meio de danças e
folias. Voltou pela Rua Nova, a Calcetaria, a Porta da Oura até aos Paços da
Ribeira. Chegou quase ao pôr-do-sol. Quanto ele ia alegre e contente,
juntamente com os que lhe entregaram o reino e se com ele foram botar, tanto o
povo lastimava, com bem de lágrimas, a dor que tinha e mostrava ter em sentimento
de o verem a ele, rei, e não a quem desejaram, escreve o antoniano Pero Roiz
Soares.
Depois de assentado nos Paços, começaram
logo a fazer cruéis execuções nos portugueses que seguiram o senhor dom António,
açoutando uns, enforcando outros, degredando muitos para as galés, não
guardando decoro a ninguém porque frades, clérigos, leigos, todos iam por um
teor remando seus remos nas galés. Em 31 de Janeiro de 1582, em carta a Gabriel
Zayas, secretário de Filipe I, Jerónimo Corterreal escreüa: a gente vulgar está
cheia de escândalo por estarem ainda correndo sangue as chagas e dores
passadas, assim das mortes dos maridos, mulheres e meninos, como das perdas e
roubos das fazendas, que se estimam, só no burgo de Lisboa e no circuito do seu
termo, em cinco contos de ouro.
Conquista
dos Açores
Batalha
da Salga ou da Praia da Vitória
Filipe I não dormia tranquilo no
Paço da Ribeira. Senhoreava o continente português mas abandeira de dom António
tremulava na ilha Terceira e noutras ilhas dos Açores. E de França saía uma armada
em apoio do rei Prior do Crato. Pelo seu lado, a rainha Isabel de Inglaterra
não tardaria a entrar no conflito. As ilhas tomaram o partido de dom António
logo em Junho de 1580 mas, em Janeiro de 1581, por acção do bispo Pedro
Castilho e pela pregação dos Jesuítas, a ilha de São Miguel tomou voz por Filipe
I. Já antes, em 29 de Setembro de 1580, os poderosos da ilha Terceira, a ilha
mais povoada, tinham tentado proclamar o rei espanhol. No porto de Angra entrou
uma nau castelhana. Os fidalgos pensaram: vinha da parte de Filipe. João
Betencourt, capitão da gente de cavalo, saiu da Casa dos Jesuítas com a
bandeira levantada e percorreu as ruas: viva el-rei Filipe! Viva! E quem o contrário
disser morra.
O corregedor dos Açores, Cipriano
Figueiredo, veio-lhe ao caminho: que coisa é esta senhor João Betencourt? Venho
pedir a Vossa Senhoria que não mande atirar da fortaleza àquela nau, que é
d'el-rei Filipe. O povo começou a juntar-se: mata, mata este traidor. Prenderam
o Betencourt e alguns cidadãos de nome e principais da cidade. Outros cavalgaram
para as suas quintas e ficaram a monte». In António Borges Coelho, Os Filipes,
Editorial Caminho, 2015, ISBN 978-972-212-740-0.
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