A morte de Lancelot
«(…) Nunca se sentira tão infeliz
na vida. Agora, longe do solo pátrio, aterrorizado, levava dias a rezar como se
isso pudesse restaurar-lhe a confiança em si próprio e na sua pobre alma
partida onde sir Galaad e Lancelor dormiam o pesado sono da morte, porque o
cavaleiro que julgara ser e o Rei que se orgulhara da sua missão tinham
expirado em terras de França. Quando Deus, enfim, levasse a sua alma, ela
estaria pronta para percorrer as novas paragens. Era apenas uma questão de
tempo. Assim pensava e o confessava, com lágrimas nos olhos, aos seus
companheiros, mirando o Sol nascente daquele Outubro frio, o mesmo Sol que fazia
refulgir os telhados, as muralhas e as colinas em redor da sua Jerusalém ansiada
onde desejava acabar a sua peregrinação, o seu caminho de sofrimento e
aprendizagem.
De Alcântara a Alcáçovas pelo Bem do Mundo
João prosseguia, porque as
circunstâncias a isso o obrigavam a guerra, a guerra de defesa, enquanto o pai
abdicava de tudo, perdido em terras de França, desaparecendo, como um garoto,
de sob a tutela paterna ou familiar, e assim o conseguiu uma vez, até que gente
do Rei de França o foi encontrar num albergue miserável. Monsieur de Lébret
apanhara um tremendo susto pois pensou que algo de terrível teria acontecido ao
infortunado Rei português, cada vez mais instável no seu juízo e nas suas
emoções. Os portugueses que acompanhavam o Rei achavam-se perfeitamente
perdidos de aflição e pouco ajudavam, pois um dos criados do Rei trouxera-lhes
uma carta onde Afonso informava que partia para Jerusalém. Sozinho, pelas
estradas, tal um pedinte, o neto de Filipa de Lencastre, arrostando com
intempéries, a fome, os salteadores... Lá o encontraram numa aldeia, onde se
acolhera e já se deitara. Um tal Leboeuf foi quem o achou, acordou-o, pôs-se de
guarda à estalagem e mandou avisar os portugueses. O conde de Penamacor, mais
morto que vivo, acorreu e trouxe o desalentado Monarca. Entretanto chegavam
cartas de Lisboa a pedir o regresso do Soberano...
Mas
em simultâneo, em Lisboa, era recebida a carta de abdicação e o filho,
interdito, como foi seu costume toda a vida, recolheu-se a meditar sobre a
missiva. Guardou segredo até se decidir. Quando se decidia, pedia conselho. Era
um método de trabalho como outro qualquer porque o conselho de nada servia. Só
ele decidia e punha na mesa as pedras do jogo que sempre entendeu pôr. Não lhe
levo a mal. Quando se deseja ordenar o mundo é assim que se faz. E um homem
que, aos vinte anos, decide criar um império, tem de arrumar a casa primeiro.
Aquele tempo de aprendizagem retirara-lhe muitas dúvidas, concedera-lhe as
certezas possíveis, mas aplainara-lhe o difícil caminho que teria de percorrer.
João era por de mais inteligente e lúcido e percebeu que o pai apenas servia
para entravar-lhe o caminho nos negócios públicos, um inepto do ponto de vista
político, embora um incapaz bem-intencionado, puro honesto». In
Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial
Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.
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