«(…) Mas da primeira vez que lhe perguntei o que havia acontecido, como o olho calado havia emudecido, me respondeu, cortante como era certas vezes com a gente que o impacientava e raramente comigo, a quem costumava tratar com benevolência e afecto: Vamos ver se nos entendemos: não o tenho aqui para que me faça perguntas sobre questões que não lhe dizem respeito.
Nesse princípio não era muito o
que me dizia respeito, se bem que isso logo tenha mudado, basta ter alguém disponível,
à mão, à espera, para lhe ir confiando ou criando tarefas; e aqui significava
na casa dele, de modo que após certo tempo passou a equivaler vagamente a do
meu lado, quando tive de acompanhá-lo numa ou outra viagem, ou visitá-lo num
set, ou quando decidiu me incluir em jantares e carteados entre amigos, mais
para fazer número do que outra coisa, creio, e para ele ter uma testemunha
admirativa a mais.
Quando estava em uma maré mais
sociável, o que por sorte não era raro, ou haveria que dizer menos melancólica
ou mesmo misantrópicas, ia com regularidade de um extremo a outro, como se seu ânimo
vivesse num balanço geralmente pausado que às vezes se acelerava de repente
diante da mulher, por causas que não me explicava e deviam ser muito distantes,
gostava de ter público e ser ouvido, ou mesmo que o incentivassem um pouco.
Na sua casa era frequente, quando
nos reuníamos de manhã para que me desse instruções se houvesse e, se não, para
que discursasse um instante, encontrá-lo caído de barriga para cima no chão da
sala ou do estúdio adjacente (as duas peças separadas por uma porta de folhas
corrediças que quase sempre estavam abertas, logo as peças permaneciam unidas
de facto, formando um espaço amplo e único). Talvez optasse por isso tendo em vista
suas dificuldades para posicionar as pernas sentado e se sentia mais à vontade
assim, de comprido sem impedimentos nem limites, tanto no tapete do salão como
no soalho de tábua corrida do escritório. Claro que quando se deitava no chão não
vestia os seus casacos, que muito se amarrotariam, mas camisa com colete ou suéter
de gola em v por cima e, isso sim,
sempre gravata, na sua idade devia lhe parecer imprescindível essa peça, pelo
menos estando na cidade, apesar de, naqueles anos, as normas indumentárias já
terem ido pelos ares.
Da primeira vez que o vi desse
modo, estirado como uma cortesã oitocentista ou como um atropelado contemporâneo,
foi uma surpresa e me alarmei, acreditando que tivesse sofrido um AVC ou que
houvesse desmaiado, ou tropeçado, caído e não conseguisse se levantar. O que
foi, d. Eduardo? Sente-se mal? Quer que o ajude? Escorregou? Me aproximei solícito,
as mãos estendidas para levantá-lo. Depois de um leve esforço (ele insistia
para que eu o tratasse de você), tínhamos combinado que eu o trataria de senhor
sem o dom antes, mas me custava muito não o antepor, saía naturalmente e
me escapava». In Javier Marías, Assim Começa o Mal, 2015, Alfaguara, ISBN
978-989-665-008-7.
Cortesia de Alfaguara/JDACT
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