domingo, 27 de agosto de 2023

Infante dom Pedro. Isabel Machado. «Os outros três, pela curta idade, ainda mal se viam em público, não fosse a inocência e a escassez de tino estragar a perfeição briosa que el-rei exigia das exibições da real família para o povo ver»

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Quarenta e quatro anos antes. Lisboa, Outono de 1405

«(…) O rei e a rainha acenavam, mostrando os sorrisos que aqueciam a alma das gentes. João I não desencantaría os seus de Lisboa, sempre ciente de que, aos olhos do povo, parecer é também ser. Cuidava ao pormenor as aparições reais, marcadas de simbolismo, para que perdurasse na memória de todos a imagem de um soberano bom, que devolvera a crença a Portugal, e de uma dinastia pujante.

Por isso, sabia que o maior tesouro que podia exibir ao reino estava atrás de si, naquele cortejo: os infantes de Avis, Duarte, Pedro e Henrique. Em cavalos ajaezados com os mais finos arreios, bem ataviados os infantes, com gibões de veludo bordados a fio de ouro, as figuras juvenis contrastavam entre si, tanto quanto os caracteres, que se foram moldando quase opostos. O herdeiro, de rosto redondo, meão de altura e cabelos castanhos e lisos, de olhar algo amolecido, era mais dado às dúvidas, que lhe enredavam a existência de estudo aturado e de aprendizagem do ofício de reinar, ao lado do  pai, do que às decisões terminantes, em linha recta. Duarte arrastava empenho de bem-fazer, cioso de tudo, lendo e escutando o mais que podia. Fizera-se erudito, mas, por vezes, escasseava-lhe a têmpera.

Em Pedro, alto e de corpo seco, as cores de inglês haviam-se imposto no sangue misturado, com o arruivado do cabelo de ondas fechadas e os olhos azuis, levemente descaídos nas extremidades, próprios de quem vê a minúcia das coisas e pensa muito. Tão erudito e apaixonado pelo conhecimento como o mais velho, era um natural sedutor, mas talvez não viesse a seduzir a todos com o avançar da vida, com as verdades que lhe saíam da boca. Dado a indagar a natureza humana, os deveres e obrigações de cada um no mundo e os mistérios da vida, avaliava tudo, mas a abundância de pensamento não lhe entravava a acção.

Henrique, de onze anos, desprezava a minúcia para favorecer o gesto largo, grandioso. Moreno, de olhar penetrante e agitado, mostrava uma vivacidade  rara e pouco quieta. Amigo de se mostrar, insinuante e destemido, não gostava de ser mandado, convicto de si mesmo. Na rígida hierarquia real era o terceiro, mas não se via disposto a viver na sombra. Sabendo-se convincente, dobrava a vontade dos outros pela persistência, ou pela paixão que punha nos seus interesses, desarmando-os.

Os outros três, pela curta idade, ainda mal se viam em público, não fosse a inocência e a escassez de tino estragar a perfeição briosa que el-rei exigia das exibições da real família para o povo ver. Isabel, de oito anos, já se mostrava determinada e segura, e quebrava a rigidez de ferro do pai, por ser a única infanta. João, aos cinco anos, adivinhava-se sensato, firme de ideias e menos dado ao sonho do que os mais velhos. Fernando, de três anos, louro e rosado como um querubim, exibia a delicadeza dos anjos, ou era essa a leitura dos outros, sempre mais caridosos com os últimos a nascer numa família numerosa». In Isabel Machado, Infante Dom Pedro, O Regente Visionário que o Poder quis Calar, 2021, Editorial Presença, Manuscrito, 2021, ISBN 978-989-897-590-4.

Cortesia de EPresença/Manuscrito/JDACT

JDACT, Isabel Machado, História, Regente Pedro, Cultura e Conhecimento, Literatura,