Enigma Ómega 1941
Uma
janela no crânio
«(…) Quem era ele? Não era aquela
a grande interrogação?, respondia o doutor Luciano. Quem somos nós, a
identidade de cada um, a consciência do eu? Desde o fundo dos tempos. Sim.
Sabia-se muito pouco da vida e da morte dele. Só mistério.
O pavor da morte não é mais que o
do aniquilamento da identidade, concordava Hipólito Cabaço.
A mesmidade, amigo, a mesmidade,
insistia Luciano, ser uma pessoa si mesma e não outra, ter consciência de si,
individualidade. entidade...
Concordo que são alguns os pontos
obscuros da vida de Damião. Mas saber-se pouco, como dizes... , estranhava
Hipólito olhando o companheiro enquanto o grupo descia a calçada.
Alguns? Muitos.
Acaso hesitou ele quanto a ser
Fulano de Tal, filho de Sicrano e de Beltrana? Tenho aqui a cópia do processo,
e Hipólito sacava de debaixo do braço um grosso caderno de papel almaço, de folhas
tintas de uma letra miudinha, folheava nervosamente como diurno conhecedor do
texto, as lunetas na mão, os olhos de míope muito chegados à escrita e lia: Aos
cinco dias do mês de Abril de mil e quinhentos e setenta e um, em Lisboa, nos Estaus...
Isso pensava ele!, interrompia o
doutor. Ter vivido com um nome, como quem diz com um eu que não era o seu...
Que queres dizer? Não era não
saber um homem quem é. Era não saber que não sabe quem é. A suprema tragédia.
Ou saber homem que sabe quem é e
não o poder dizer... A suprema comédia.
Uma vida inteira enganado, logrado,
errada a letra do epitáfio que mandara lavrar no mármore…
Seguiram calados em seus pensamentos
os tacões dos sapatos martelando nas pedras segundos de eternidade... Hipólito ia
remordendo que não fora de bom-gosto a referência a comédia.
E onde o acharam morto? Aí tinha
o amigo outro mistério.
Em casa, a cabeça caída sobre a
lareira. Não esquecesse, amigo o testemunho do desembargador Vieira Sousa. Morrera
indo da Batalha para o mosteiro dc Alcobaça. Pernoitara no caminho em uma venda.
Era de invernada. Depois de cear mandara deitar os criados. Ele, por mor do
frio, ficara-se ali à lareira, com uma manta pelos joelhos, a ler, a escrever. Os
donos da hospedaria deram as boas-noites e retiraram-se. Pela manhã
encontraram-no deitado de borco, as barbas queimadas das brasas, sem vida…
Sono? Um ar que lhe deu? … Alguns
falam de icto apoplético, estrangulado por criados…
Sim, sirn, conhecia. Nos Hlspaniae
Ilustratae de Andreas Schott; sive apoplectico correptus morbo, sive o
furacibussuffocatus famulis incertus… Camilo fazio-o desancado a sacos de areia
pelos esbirros do conde de Castanheira… Fosse como fosse, entre os dedos
segurava o mesmo papel…
Que papel?
Sabia-se lá. O mesmo,
palavras do desembargador…
Mas outros asseveram que assim
tal e qual apareceu morto na sua casa de Alenquer en trinta de Janeiro de mil
quinhentos e setenta e quatro. O doutor fazia um trejeito de dúvida. Hipólito
rebatia: O padre Luís Velho, ao tempo prior de Santa Maria da Várzea,
lavrou-lhe o assento de óbito e o corpo foi sepultado na capela-mor, no jazigo
que o próprio Damião mandara fazer para si, sua mulher e descendentes. Com o
rodar dos séculos… Estranha função esta nossa! Estamos a vinte e sete de Agosto
de mil novecentos e quarenta e um…
Trezentos e setenta e um anos!...
aqui vamos nós a caminho da velha igreja de Santa Maria da Várzea…» In
Fernando Campos, A Sala das Perguntas, Difel 82, 1998, ISBN 972-290-437-X.
Cortesia de Difel/JDACT
JDACT, Fernando Campos, Literatura, História, O Saber, Cultura, Damião de Góis,