quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

A Filha do Papa. Luís Miguel Rocha. «Não havia rasto de nenhum teatino, os membros da ordem que se encarregava de zelar pelo local. Olhou em redor e aproveitou o momento»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) No primeiro dia, milagrosamente para os padrões romanos, encontrou lugar para estacionar a poucos metros do edifício. Se o Francês fosse um homem de fé poderia pensar que seria um bom augúrio mas nem ele o era nem se passou nada de especial além da habitual espera. No segundo dia optou por não levar o Mazda. Andou a pé, vigiou as imediações, fingindo, outra vez, ser mais um dos muitos turistas que por ali passavam. Tirou fotografias, atentou na porta de entrada mas não entrou e depois foi, efectivamente, passear. Neste terceiro dia jogara pelo seguro. Substituíra o Mazda por um Alfa Romeo e deixou o hotel a meio da tarde. Às seis e meia já estava estacionado a cerca de cem metros do edifício. A cidade fervilhava com o movimento turístico característico. Inúmeras carrinhas e alguns camiões enchiam as artérias romanas para os provimentos vespertinos. Nada podia faltar às lojas que se esvaziavam a todas as horas do dia. Roma era uma cidade buliçosa e queria estar sempre composta para agradar a todos os seus visitantes. Alheio a tudo isto, o Francês observou a entrada do edifício, como nos dias anteriores. Os turistas ainda eram muitos. Deambulavam a espaços, admirando as fachadas e evitando os condutores mais impacientes que poluíam o ar da cidade, indiferentes aos afazeres dos outros, muito menos importantes que os seus.
Os minutos foram lentos a tornar-se em horas. O Francês comeu uma sanduíche que comprara na noite anterior e bebeu água. A alimentação era totalmente descurada quando estava a cumprir um contrato. Ossos do ofício. Em breve, poderia tornar a dar largas à sua paixão. Até lá, tinha de tolerar o frio e a fome. O combinado era entrar na igreja ao fim da tarde e assim fez. O cliente corrigi-lo-ia se o ouvisse ou perscrutasse os seus pensamentos. Não era uma igreja mas uma basílica. E discorreria sobre as diferenças entre uma e outra, mais as de permeio, como uma igreja ser um templo com mais de um altar, ao contrário de uma capela que só tem um, e muito diferente de uma basílica que é um edifício grande, como este, com uma nave larga, com naves laterais, fileiras de colunas, uma abside semicircular. Não esqueceria de mencionar as catedrais, abadias e santuários. Repetiria as vezes que fossem necessárias até que a informação lhe assentasse no cocuruto, até que a soubesse repetir de cor. Errar era morrer, literalmente, e libertar um homem do erro era dar e não tirar, pois o erro fazia mal e prejudicaria o homem que o abrigasse, mais cedo ou mais tarde. Entrou na basílica como combinado. Desta vez trazia uma mochila comprida às costas, em vez da máquina fotográfica, com as alças enfiadas nos ombros, como se fosse um estudante a caminho da escola.
Os últimos turistas admiravam a fachada barroca, fruto da voluntariedade da duquesa de Amalfi, cujo patrono familiar era o mesmo Andrea que dava nome à basílica. Caminhou até ao altar e observou a imensa nave central, um espaço tão amplo onde caberiam milhares de pessoas. O cliente fora claro. Do lado direito, de quem olha para a nave central a partir do altar. Para que não restassem dúvidas, relembrou as palavras exactas que lhe havia dito, com a habitual voz pausada, no último telefonema. Na sua profissão não havia lugar a mal-entendidos; eram fatais. Os últimos turistas encaminhavam-se, lentamente, para a saída. Não havia rasto de nenhum teatino, os membros da ordem que se encarregava de zelar pelo local. Olhou em redor e aproveitou o momento. Abriu a pequena porta e entrou. Por fora, o confessionário parecia muito mais pequeno. Dentro havia espaço para se sentar e ficar à vontade. Fechou a porta com cuidado para não levantar suspeitas e abriu a mochila em silêncio. Montou o mecanismo em poucos segundos e testou-o. Fora feito por si, manualmente, peça por peça, para poder ser usado em todas as situações. Entreabriu a porta. Uma menina de 10 anos atravessou a nave a correr, fazendo dela o seu imenso parque infantil. Da sua posição tinha um ângulo de visão de quinze metros para cada lado. Era mais que suficiente. A mãe veio buscá-la e deu-lhe a mão para se irem embora. A criança fez birra, tentando uma chantagem emocional que não resultou. O Francês agradeceu. Era melhor ela não andar por ali. A inocência, uma vez perdida, não podia ser recuperada e, pelo contrário, as trevas, uma vez contempladas nunca seriam esquecidas. O Francês era um censor, não um monstro. A birra continuava enquanto a mãe a puxava pelo braço em direcção à porta. O Francês assistiu a tudo isto pela mira telescópica. Ajustou o anel da objectiva e focou os alvos, a mãe e a filha, ensaiando o destino de uma e de outra de dentro do confessionário. Os ângulos estavam ajustados. O resto já não dependia dele. Agora só lhe restava esperar. O pior de tudo era a espera». In Luís Miguel Rocha, A Filha do Papa, Porto Editora, 2013, ISBN 978-972-004-411-2.

Cortesia de PEditora/JDACT