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A
Letra Pitagórica
«(…) Estás a mangar comigo. Mãos
assim não são de um filho das ortigas. És para ai filho de algo. Os senhores
nobres fazem filhos a torto é a direito e depois mandam-nos para os conventos
para serem bispos. No meu íntimo pensava eu se ela não teria uma boa dose de
razão... Outras vezes encontrava-me a ler algum livro. Sentava-se muito de manso
na beira da cama, em silêncio, as mãos ocupadas numa camisola de lã, cujas
medidas tirara no meu corpo. Que estava a ler? Eu explicava-lhe com muito
pormenor. Margarida suspirava: não era chinela para o meu pé!... A noite, antes
de se recolherem, as duas mulheres vinham fazer-me um pouco de companhia, à luz
da candeia de azeite, enquanto eu tomava uma canja de galinha cheia de olhos de
gordura e os ovinhos amarelos a boiarem, rescendente. Boa canja, sim senhora! É
para se comer toda. Está quente! É ir soprando e comendo devagar...
E a canja vai desaparecendo, com
elas regaladas a contemplarem-me, como se eu fosse um santo no altar. Menino
bonito!, diz Elsa tirando-me a tigela da mão. A mãe de Margarida é uma bela
mulher dos seus trinta e cinco anos. Quando se inclina sobre mim para me
aconchegar a roupa, sinto-lhe os seios a roçarem-me e o perfume forte que dela
emana. Todo o meu corpo desperta. Ponho-lhe a mão na cintura e ela, com o rosto
quase chegado ao meu, olha-me fundo nos olhos, sorri com doçura e diz, dando-me
um beijo na testa: dormi sossegado, para amanhã estardes bom. Mas eu sentia que
também a sua carne tinha frémitos. Nessa noite custava-me a adormecer, a tratos
com os meus sentimentos contraditórios, desavindo comigo próprio, acusando-me a
consciência de não estar a proceder bem, quando senti que alguém entrava de mansinho
no quarto, levantava os cobertores e o lençol e metia-se na cama junto a mim. Chiu!
Não façais barulho! Era Elsa. Margarida tratava-me por tu. Senti-lhe o corpo
nu, fremente, ansioso. Não me fiz rogado. De manhã acordei tarde, com Margarida
a insistir que eram mais que horas do julepo que o físico receitara e do leite
quente com sopas de pão. Seu preguiçoso! Isto são horas de acordar? Enquanto eu
faço as honras às sopas, que não ao julepo, vou dizendo à moça que me sinto com
forças para me levantar e ir apanhar um pouco de sol, depois de tomar um banho,
se ela quiser ter a canseira de me arranjar água quente. Põe-se logo ao
trabalho e eu, embrulhado num cobertor, vou até à cozinha vê-la proceder. Já
estás bom, vejo.
Sinto as pernas ainda um pouco
fracas, digo-lhe eu, pensando com os meus botões que essa fraqueza tem uma
causa bem próxima e não provém apenas da longa doença..., e sentando-me num
mocho. Enquanto na lareira a água aquece nos panelões negros colocados nas
tripeças, Margarida põe-se a cantar: Joãozinho,
cara de anjo serpão da minha varanda, caixinha dos meus segredos, onde o meu
sentido anda.
Joãozinho,
cara de anjo, caixinha dos meus anéis, se tu queres casar comigo vamos tratar
dos papéis.
Ambos
rimos. Ponho-me também a cantar No
meio daqueles matos... Conheces esta moda? Ela conhece a modinha e
secunda-me: no meio daqueles matos
andam dois coelhos bravos. já é
tempo de se unirem aqueles dois namorados. Ai amor, ai amor, ai amor! Ai amor
do me’coração quí tollis, qui tollis, qui tollis agnus Dei miserere nobis Miserere nobis! A
cantiga termina numa grande risota e ela sentada nos meus joelhos, abraçada a mim,
aos beijos. Foi, a principio, uma posse rápida, frenética, mútua, e em seguida,
por largo tempo, serenamente saboreada e consolada. Comemos depois um almoço reforçado,
acompanhado de um bom vinho que ela foi desencantar a um esconso. A tarde,
quando a mãe chegou, arrumava ela a cozinha enquanto eu refazia as forças numa
longa e bendita sesta. Nos dias que se seguiram eu convalescia a olhos vistos,
amava a filha de dia e a mãe de noite, comia com apetite e o bom vinho
restaurava-me as energias, aquecia-me o sangue e restituía-me a costumada boa
disposição». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva,
Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.
Cortesia
de Difel/Alfaguara/JDACT