quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

A Catedral do Mar. Ildefonso Falcones. «Tentou de novo, por várias vezes, e sempre com o mesmo resultado: os dois cavaleiros brincavam com ele, perseguindo-o e derrubando-o, enquanto riam. Por fim, cambaleando e ferido, ficou estendido no chão, junto às patas dos animais…»

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Servos da terra. Ano de 1320. Quinta de Bernat Estanyol Navarcles. Principado da Catalunha
«(…) Francesca nem sequer olhava para o menino. Aproximava o bebé, a quem deram o nome de Arnau, a um dos seios, e depois a outro. Mas não olhava para ele. Bernat vira as camponesas darem de mamar aos seus filhos e, desde a mais remediada à mais humilde, todas esboçavam um sorriso, ou deixavam fechar-se-lhes os olhos, ou acariciavam os filhos enquanto os amamentavam. Francesca, não. Limpava-o e amamentava-o, mas, nos dois meses de vida que já tinha, o filho de Bernat nunca ouvira a mãe falar-lhe com ternura, nunca a vira brincar com ele, levantar-lhe as mãozitas, mordiscar, beijar ou, simplesmente, fazer-lhe uma festa. Que culpa tem ele, Francesca?, pensava Bernat quando pegava em Arnau nos seus braços. Então, levava-o para longe da mãe, para onde podia acariciá-lo e falar-lhe, a salvo da frieza de Francesca.
Porque o filho era dele. Todos nós, Estany ol, o temos! dizia Bernat para consigo quando beijava o sinal que Arnau exibia junto à sobrancelha direita. Todos nós o temos, pai, repetia depois, levantando o menino para o céu. Esse sinal depressa se tornou algo mais que um motivo de tranquilidade para Bernat. Quando Francesca ia ao castelo para cozer o pão no forno, as mulheres levantavam a manta que cobria Arnau para o verem. Francesca deixava-as fazê-lo e depois sorriam entre si diante do forno e dos soldados. E quando Bernat ia trabalhar as terras do senhor, os camponeses davam-lhe palmadas nas costas e felicitavam-no, mesmo diante do aguazil que vigiava os trabalhos. Muitos eram os filhos bastardos de Llorenç Bellera, mas nunca uma reclamação dera frutos; a palavra dele impunha-se perante a de qualquer ignorante camponesa, embora depois, entre os seus, não deixasse de fazer alarde da sua virilidade. Era evidente que Arnau Estany ol não era seu filho, e o senhor de Navarcles começou a notar sorrisos mordazes nas camponesas que vinham ao castelo; dos seus aposentos, via que cochichavam entre elas, e mesmo com os soldados, sempre que encontravam a mulher de Estany ol. O rumor estendeu-se para além do círculo dos camponeses, e Llorenç Bellera tornou-se alvo dos gracejos dos seus iguais.
Come, Bellera, disse-lhe sorridente um barão de visita ao castelo. Chegou-me aos ouvidos que precisas de ganhar forças. Todos os presentes à mesa do senhor de Navarcles fizeram coro nos risos dessa ocorrência. Nas minhas terras, comentou outro, não permito que nenhum camponês ponha em dúvida a minha virilidade. Porventura proíbes os sinais?, replicou o primeiro, já sob os efeitos do vinho, e dando azo a sonoras gargalhadas, a que Llorenç Bellera respondeu com um sorriso forçado. Aconteceu no início de Agosto. Arnau estava no seu berço, à sombra de uma figueira, no pátio de entrada da casa; a mãe trabalhava entre a horta e os currais, e o pai sempre de olhos postos no berço de madeira, obrigava os bois a pisarem uma e outra vez os cereais que espalhara pela eira, para que as espigas soltassem o precioso grão que os alimentaria durante todo o ano. Não os ouviram chegar. Três cavaleiros irromperam a galope pela quinta: o aguazil de Llorenç Bellera e outros dois homens, armados e montados em imponentes animais criados especialmente para guerrear. Bernat percebeu que os cavalos não estavam armados como nas cavalgadas ordenadas pelo seu senhor. Provavelmente, não tinham considerado necessário armá-los para intimidar um simples camponês. O aguazil manteve-se um pouco afastado, mas os outros dois, já a passo, esporearam as suas montadas para o local onde se encontrava Bernat. Os cavalos, treinados para a guerra, não hesitaram, e lançaram-se sobre ele. Bernat retrocedeu, aos tropeções, até que caiu por terra, muito perto dos cascos dos inquietos animais. Só então os cavaleiros deram ordens para que parassem.
O teu senhor, gritou o aguazil, Llorenç Bellera, reclama os serviços da tua mulher para amamentar Don Jaume, filho da tua senhora, Dona Catarina. Bernat tentou levantar-se, mas um dos cavaleiros voltou a esporear o cavalo. O aguazil dirigiu-se para onde se encontrava Francesca. Pega no teu filho e acompanha-nos!, ordenou. Francesca tirou Arnau do berço e começou a caminhar cabisbaixa, atrás do cavalo do aguazil. Bernat gritou e tentou pôr-se de pé, mas antes que o conseguisse, um dos cavaleiros lançou o cavalo contra ele e derrubou-o. Tentou de novo, por várias vezes, e sempre com o mesmo resultado: os dois cavaleiros brincavam com ele, perseguindo-o e derrubando-o, enquanto riam. Por fim, cambaleando e ferido, ficou estendido no chão, junto às patas dos animais, que não paravam de morder os freios. Quando o aguazil se perdeu na distância, os dois soldados deram meia-volta e esporearam as suas montadas». In Ildefonso Falcones, A Catedral do Mar, 2006, Bertrand Editora, 2009, ISBN 978-972-251-511-5.

Cortesia de BertrandE/JDACT