quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

O Túmulo Sob as Colinas. Belinda Bauer. «Mas não tinham lugar algum para ir, de modo que perambulavam, esbarrando uns nos outros, rindo e dizendo palavrões em voz alta…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«A charneca de Exmoor gotejava com samambaias sujas, relva áspera e descolorida, tojo espinhento e urzes do ano anterior. Tudo tão escuro que um incêndio parecia ter varrido a paisagem, levando consigo as árvores e deixando a charneca fria e exposta para enfrentar o Inverno de forma desprotegida. A neblina dissolvia o horizonte ao redor e mesclava céu e terra num casulo cinzento, em torno da única coisa visível na paisagem: um garoto de 12 anos, metido numa calça preta impermeável, mas sem chapéu, sozinho com uma pá. Chovera durante três dias, mas as raízes da relva, das urzes e dos tojos contorcidas no solo ainda resistiam aos golpes da pá. A expressão de Steven não mudava; ele enterrava a lâmina na terra de novo, sentindo uma pequena e prazerosa vibração pelo impacto, que subia até às suas axilas. Dessa vez, ele deixou um buraco, uma pequena marca humana na grande faixa de terra ao seu redor. Antes que pudesse fazer o buraco seguinte, a primeira faixa estreita cavada já se enchera d’água e desaparecera.

Três garotos caminhavam despreocupadamente, enfrentando a chuva do vilarejo de Shipcott, as mãos nos bolsos, os capuzes cobrindo os rostos, os ombros curvados, como se estivessem ansiosos para fugir dali. Mas não tinham lugar algum para ir, de modo que perambulavam, esbarrando uns nos outros, rindo e dizendo palavrões em voz alta, a troco de nada, apenas para que o mundo soubesse que eles existiam e que ainda tinham expectativas. A rua era estreita e sinuosa. No Verão, turistas passeavam e sorriam para os terraços pintados com cenas marinhas, as portas se abrindo directamente na calçada, as persianas esquisitas. Mas, por causa da chuva, as casas amarelas, cor-de-rosa e azul-celeste se tornavam um lembrete esmaecido da luz do sol e um refúgio apenas para os que eram jovens demais, velhos demais ou pobres demais para ir embora. A avó de Steven olhava pela janela com o olhar fixo. Ela começara a vida como Gloria Manners. Em seguida, tornou-se a esposa de Ron Peters. Depois disso ficou sendo a mãe de Lettie, e então de Lettie e Billy. Decorrido muito tempo, passou a ser conhecida como a pobre sra. Peters. Agora, ela era a avó de Steven. Mas, no fundo, sempre seria a pobre sra. Peters; nada poderia mudar isso, nem mesmo os seus netos. Acima das meias cortinas, a janela da frente recebia o impacto da chuva. As casas ao longo da rua já haviam acendido as luzes. Os telhados eram tão diferentes quanto aos muros. Alguns ainda tinham antigas telhas de porcelana, ásperas com o musgo. Outros, a ardósia plana e cinzenta que reflectia o céu aquoso. Por sobre os telhados, a parte mais alta da charneca mal era discernível através do nevoeiro, uma coisa suave e arredondada quando vista à distância. Do calor de um apartamento à frente, com aquecimento central e uma chaleira que começava a assobiar na cozinha, aquele lugar até parecia inocente.
O mais baixo dos garotos bateu na janela com a palma da mão e a avó de Steven recuou, amedrontada. Os meninos riram e correram, embora ninguém os estivesse perseguindo. Sabiam que dificilmente alguém faria isso. Velha intrometida!, gritou um olhando para trás, apesar de ser difícil saber qual deles, pois os capuzes estavam puxados sobre o rosto. Lettie correu para a sala, sem fôlego e assustada. O que foi isso? Mas a avó de Steven voltara à janela. Ela nem mesmo desviou o olhar para a filha. O chá está pronto?, perguntou». In Belinda Bauer, O Túmulo Sob as Colinas, 2010, Editora Record, 2013, ISBN 978-850-110-140-2.

Cortesia de ERecord/JDACT