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Rio Lis, Junho de 1134
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Paio Guterres deu uma gargalhada, mas o mordomo logo esclareceu que o autor
da sugestão fora o próprio mestre dos templários de Soure, Jean Raymond. E,
para surpresa do príncipe, acrescentou: o Ramiro abandonou a Ordem do Templo. Afonso
Henriques franziu a testa: porquê? Ermígio Moniz suspirou, olhando para Peres
Cativo e dando a entender que a malícia anterior do alferes fora certeira. Para
não desonrar os templários, foi-se embora. Levemente
inquieto, pois sabia dos antigos enamoramentos de Ramiro por Chamoa, o príncipe
de Portugal perguntou de pronto: para o Norte? Meu tio Ermígio Moniz não
conhecia o destino do bastardo de Paio Soares e encolheu os ombros, o que levou
Peres Cativo a exclamar: que vá mas é para o Diabo!
Paio Guterres riu-se novamente, mas depois o mordomo do Condado
Portucalense insistiu que mais alguns castelos se
deviam construir, talvez em Penalva e Pombal, para solidificar as defesas da
região. Afonso Henriques concordou, mas lembrou que a edificação das
fortificações duraria mais de um ano. Enquanto
isso, o fossado teria de continuar, para obterem mais vitórias e mais território. Temos de
massacrar Zhakaria!, reforçou Peres Cativo.
Ermígio Moniz era o único que repudiava tanta vontade de destruição, pois,
a observar o horizonte, Paio Guterres comentou: gosto deste local, parece-me bom para lutar! Nas últimas operações,
aquele cavaleiro portucalense revelara o seu enorme talento como hábil guerreiro.
Reconhecendo-o, o príncipe declarou que ele seria o futuro alcaide de Leiria,
mal o castelo estivesse pronto. Sobre os seus ombros recairia a
responsabilidade de defender o fortim mais a sul e, portanto, o mais perigoso, de todo o Condado Portucalense.
Abu Zhakaria vai ouvir falar de mim!, prometeu Paio Guterres. Os outros
abraçaram-no, aplaudindo aquela nomeação e desejando-lhe sorte. Depois,
regressaram ao acampamento, onde Ermígio Moniz avisou o príncipe de que, com fossados
tão grotescos e sangrentos, jamais seria possível convencer Abu Zhakaria a trocar
a relíquia por Zaida e Fátima. Desinteressado, Afonso Henriques resmungou: a bruxa nunca mais apareceu e ninguém sabe da relíquia! Meu tio ficou ligeiramente abalado,
mas o meu melhor amigo nem deve ter notado, pois comentou: e durante o fossado é
perigoso a Zaida ir para Córdova.
Dias antes, o príncipe de Portugal cruzara-se com a mais nova das princesas mouras e meu tio topara
uma troca de olhares suspeita entre os dois. Por isso, perguntou: estais
enamorado da Zaida? Afonso Henriques negou tal sentimento, retorquindo: vós é
que gostais de mouras, mordomo! Meu tio emudeceu, magoado com aquela
impertinente referência à falecida mãe de Raimunda, mas Peres Cativo decidiu provocá-lo, recordando que tinham feito prisioneiras
várias raparigas em Pombal, algumas delas bem vistosas. Mordomo, quereis uma
mourinha gostosa na vossa tenda? Ermígio Moniz encolheu os ombros, como se não
tivesse paciência para aquela conversa de rapazolas, mas Paio Guterres revelou
muita vontade de trocar carícias com as mouras, alegando que tinha direito a
isso, pois combatera bem. Então, o príncipe deu autorização para que tanto ele
como Peres Cativo se divertissem com as prisioneiras e os dois militares
afastaram-se, muito bem-dispostos. Curioso, meu tio mirou o príncipe e
perguntou: e vós? Não ides porquê?
Afonso Henriques fechou a dalmática vermelha, como se estivesse com frio.
Em silêncio e em vez de se dirigir para a sua tenda, caminhou na direcção do
local onde estavam os cavalos. Quando lá chegou, ficou a olhar para o seu animal
asturiano, que Gonçalo Sousa lhe oferecera. Não presta..., murmurou,
desalentado». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, A Vitória
do Imperador, Casa das Letras, LeYa, 2016, ISBN 978-989-741-461.
Cortesia
de CdasLetras/LeYa/JDACT