terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

A Sereia. Camilo Castelo Branco. «Águas malditas, pudeste, tão linda e nova, mata-la, matar a pomba celeste! Ai! Pobre anjo da má sorte! Descansa, em fim, que não voltas desses abismos da morte!»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Em noites de lua cheia,
Já se não ouve o cantar
Daquela triste Sereia!
Oh pobre rapariga caída,
Já sobre ti se fecharam
Os abismos desta vida!
Diz-me, diz-me, ó lua cheia,
Choras tu na sepultura
Daquela pobre Sereia?
Em que finar-se vão findos
Aqueles cabelos douro,
Aqueles olhos tão lindos!

Águas malditas, pudeste,
Tão linda e nova, mata-la,
Matar a pomba celeste!
Ai! pobre anjo da má sorte!
Descansa, em fim, que não voltas
Desses abismos da morte!
Nos céus passa a lua cheia
Para ouvir os teus cantares,
E tu não voltas, Sereia!
Mas um raio de luz pura
Coa-se através dos vidros
Sobre a tua sepultura».

Estes melancólicos tercetos, escritos há cem anos, que significado tiveram? Encontrei-os num livro manuscrito datado de 1768. Em cinquenta páginas de prosa do mesmo manuscrito, descobri o segredo dos versos.

«Estamos no dia 15 de Maio de 1762.
Naquele tempo, os dias de Maio, no Porto, eram temperados, alegres, perfumados, encantadores. A Primavera, há cem anos, aparecia quando o calendário a dava. Ninguém saia da sua casa às cinco horas duma tarde cálida de Maio, com um casaco de reserva no braço para resistir ao frio das sete horas; nem o paralta portuense levava escondido na copa do chapéu o cache-nez, com que, ao anoitecer, havia de resguardar as orelhas da nortada cortante. O globo, naquele tempo, movia-se em volta do sol com a regularidade assinada pelos astrónomos. A gente ditosa, que então viveu, podia confiar-se nos entendidos em rotação dos planetas; e os sábios podiam sem receio responsabilizar-se pela pontualidade das estações. Quem, à face da folhinha, se vestisse de fresco em Maio, podia sair à rua trajado de holandilha ou vareja, que não entraria em casa a espirrar constipado pela súbita frialdade que o surpreendeu. A gente fiava-se dos sábios, os sábios da ciência, e a ciência dos factos repetidos. Depois, porém, daquela época, desconcertaram-se os sistemas das regiões altas. As pessoas muito espirituais receiam que este desconcerto venha a desfechar no fim do mundo; outras, mais racionalistas, pretendem que a desordem das estações proceda de causas que, passado um indeterminado período, cessem de existir. Ninguém se lembrou ainda de conjecturar que as vaporações constantes das fornalhas e o fluido eléctrico de que o ambiente está saturado, possam ter influído na substância dos sólidos e fluidos componentes do maquinismo celeste, alterando-lhes o modo de actuarem sobre a terra. Se algum sábio estivesse de pachorra para demonstrar a profundeza desta a minha hipótese original, ficávamos convencidos nós de que a civilização do fumo e a dos arames eléctricos, a final, acabariam de todo com a Primavera. Em compensação, os engenhosos destruidores das nossas alegrias de Maio, haviam de inventar uns fogões cómodos para o nosso uso em Julho.
De mais disso, o Porto da Primavera de 1762, gozava-se de ar impregnado de aromas, porque, naquela era, grande numero de ruas que hoje respiram vapores nocivos pelos férreos pulmões dos seus edifícios e fábricas, eram quintas, arvoredos, jardins, ourelas e marginados verdejantes de límpidos regatos, que os duetos actuais do gaz degeneraram em água poluída dessas dezenas de chafarizes em que tragamos peçonha. Não era, todavia, o sol nem os aromas que extraordinariamente alegravam as famílias mais gradas da cidade do Porto, no dia 15 de Maio de 1762. As bandeiras que tremulavam, brandamente assopradas por olorosas brisas, por sobre os balcões e rótulos das janelas da rua Chan e Corpo-da-Guarda, significavam algum grande júbilo nacional, que certamente não era casamento de rei, nem nascimento de príncipe. Mais que no comum das famílias burguesas, brincava o contentamento nas ridentíssimas filhas do Chanceler governador das justiças Francisco José Serra Craisbeeck Carvalho, nas graciosas e fogosas meninas do governador general da Província João D’Almada Melo, nas sobrinhas do Cabo-mor Miguel José Moura, nas duas loiras irmãs do senhor de Quebrantões e Gaia-pequena Álvaro Leite Pereira, e muitas mais, assim formosas que bem nascidas. E, depois, que tráfego é este de costureiras que vão e vem; de alfaiates azafamados que sobem e descem duns palácios para outros? Porque está a praguejar aquele fidalgo impaciente contra os desgraciosos anéis da sua cabeleira, enquanto a esposa vocifera contra a modista ignorante que lhe estreitou as anquinhas, deixando-lhe quase molduradas na seda flexível as magras formas da natureza sovina? Porquê tudo isso? Toda esta azáfama desusada na cidade com os seus luxos e fidalgas folias?» In Camilo Castelo Branco, A Sereia, 1762-1768, Editora Luso Livros, Wikipédia.

Cortesia de ELusoLivros/JDACT