Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…) A proximidade espacial entre
a catedral e a judiaria e os vínculos de natureza económica estabelecidos entre
cristãos e judeus afiguram-se por demais evidentes. A Viseu de Quatrocentos
ressurgia assim como um espaço dinâmico e multi-étnico, ao mesmo tempo que se
reerguia das ruínas deixadas pela guerra e prosseguia a reorganização da sua
malha urbana em função dos interesses de quem detinha a propriedade. Um dos episódios
mais significativos deste processo reformador ocorreu logo entre 1415 e 1418, com
a deslocalização da judiaria para uma zona contígua, igualmente bem situada,
entre a Praça e a Rua das Tendas, mas mais afastada do perímetro da Sé (e que
hoje corresponde à Rua da Senhora da Piedade, um processo análogo a este
ocorrido em Viseu verificou-se em Braga, em 1466, com a transferência da
Judiaria para uma zona contígua que passou a denominar-se de Judiaria Nova; a contenda do cabido com os judeus de Braga, na
segunda metade do século XV; sobre a localização estratégica das judiarias na
topografia das cidades portuguesas e a solução encontrada, por exemplo para
Lisboa e Lamego, da construção de novas judiarias como forma de resposta à expansão
das respectivas comunas). A razão desta nova mudança talvez a encontremos no
crescimento da comunidade judia e na necessidade desta se arruar num espaço de
maiores dimensões. Ao que também podemos acrescentar as relações de poder
estabelecidas entre uma comuna mais numerosa e influente e uma maioria cristã também
interessada em com ela coexistir, porque empenhada em ter o seu contributo na reconstrução
da economia da cidade.
Na verdade, se em 1415 os cónegos
recebiam um pardieiro na rua da Judiaria, identificada junto à Torre dos Sinos,
três anos depois, em 1418, o cabido emprazava a um clérigo uma casa nessa mesma
rua, mas desta vez com a indicação de aí ter sido o antigo espaço de morada dos
judeus. Motivo pelo qual a partir desta data passou a ser identificado por rua
da Judiaria Velha, em oposição à nova que então se organizava e edificava, em
grande medida em terrenos de propriedade da Sé, e para onde se transferiu a
sinagoga, agora também aí referenciada (em 1433, 7 de Agosto, Viseu, o cabido
de Viseu emprazou ao judeu Salomão Alentrez
e a sua mulher Bemvinda,
uma casa na Judiaria, na rua que ia para a sinagoga; e em 1453, 20 de Março,
Viseu emprazou ao judeu Abraão Catarribas
de Celorico e a sua mulher Lediça,
umas casas na judiaria diante da porta da sinagoga). Só assim se explica que
muitas das casas desse espaço, agora afecto à nova judiaria de Viseu, fossem
exploradas e alvo da atenção do cabido da Sé, naturalmente atraído pela
disponibilidade económica dos seus ocupantes e pela consequente perspectiva de
obter um bom rendimento nas rendas a cobrar. Este interesse patrimonial dos
cónegos no novo bairro judaico, também conhecido noutras cidades episcopais,
como Braga, Lamego e Évora, não impediu que alguns hebreus mais abonados
tivessem acesso à propriedade, comprando e vendendo as suas casas de habitação,
como aconteceu com Isaac Franco ou com Samuel Navarro (Isaac Franco, morador em
Trancoso, vendeu ao judeu Samuel Navarro e a sua mulher Aviziboa, umas casas na judiaria, por três mil reais
brancos, em 1441, 8 de Dezembro; casas estas doadas pela judia Aviziboa a seu filho Salomão
Navarro em 1477).
No
entanto, importa sublinhar que a mudança da judiaria, da rua contígua à Torre
dos Sinos para este novo espaço, terá sido um processo gradual, caracterizado
pela progressiva ocupação por cristãos das casas até aí ocupadas por judeus,
enquanto alguns destes ainda aí permaneceram durante mais alguns anos.
Lembremos os exemplos do ourives Mordafay
ou de Jacob Catarribas,
que os documentos do cabido referenciam, entre 1428 e 1439, como moradores na
Judiaria Velha, junto das escadas traseiras da catedral e da Torre dos Sinos
(depois chamada Torre do Relógio, por entretanto ter recebido esse mecanismo).
Mas não só aqui registamos a morada de judeus; apesar de congregada num novo
local a população hebraica espalhou-se pontualmente por zonas cristãs da cidade
(fenómeno comum a outras cidades e vilas portuguesas), seja nas movimentadas e
comerciais Rua das Tendas (onde os judeus Abraão Abiol e sua mulher Lidiça
tinham emprazado do cabido um pardieiro ao qual renunciam em 1429, 5
de Junho, e Rua da Triparia, aliás próximas da judiaria, seja nas mais
afastadas Rua da Vela de S. Domingos ou na Rua das Quintãs, onde, inclusive,
existiam casas de propriedade da comuna». In Anísio Sousa Saraiva, Metamorfoses da
cidade medieval. A coexistência entre a comunidade judaica e a catedral de
Viseu, Revista Medievalista, nº 11, 2012, Universidade de Coimbra, Centro de
História da Sociedade e da Cultura, Centro de Estudos de História Religiosa,
IEM, ISSN 1646-740X.
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