quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

O Retrato do Rei. Ana Miranda. «… e para ser cumprida inteiramente mandei passar a presente por mim assinada e selada com o selo grande das armas do governador de sua majestade…»

Cortesia de wikipedia e jdact

O Retrato do Rei
«(…) Acabei de defender o bispo. Preciso de uma mercê vossa, dom Fernando. Amanhã vou partir para Minas Gerais. Quero passaporte. Perdestes o juízo? Viver entre os infiéis? Aquilo não é lugar para brancas. Mas preciso ir. Meu pai está doente. Eu soube, disse Fernando. Acabo de receber mais uma carta de dom Afonso. Anda metido com uma negra, como uma ovelha desgarrada. E o que tem isso? O que tem isso?, ele sorriu, mostrando os seus dentes envernizados de fidalgo. Sombras da morte, bastardos, fervedouros, e murmurando, testamento oral..., ou cerrado. Soubestes de alguma confusão por lá? Aquilo é um covil de barbarismo.
Ouvi falar que os paulistas estão matando os reinóis. Apenas a maldita fome do ouro e da carne. Não há conflitos sérios nas Minas. Se houvesse, eu saberia. Antes assim. O que achais dos paulistas? Fernando meditou por instantes. São como os galgos da caça, disse afinal, amestrados para farejar e perseguir a presa. Conhecem as manobras, as instâncias e as correrias, todavia não são eles quem comem as lebres, apesar de tê-las entre os dentes. Explicai-me melhor. Os paulistas são selváticos, prima. Bravos, donos de uma truculenta liberdade, consideram-se diferentes dos outros moradores do país, o que não deixa de ser verdade. São rudes por fora e gentis por dentro, o contrário do que costumamos ser. Vaidosos, matam-se por uma honra ou distinção. Descobriram o ouro nos sertões, mas não sabem retirá-lo das águas. Ir para as Minas, que insensatez!
E o passaporte? Não é mais preciso, o rei derrogou as ordens que permitiam a entrada apenas a principais e nobres, gente de qualidade. Agora todos podem entrar nos sertões. Então, adeus. Não quero que viajeis. Tomou-lhe a mão e beijou-a. Ficai aqui. Sabeis que a minha mulher vos aprecia muito. A decisão já está tomada. Fernando desistiu, com um suspiro. Conhecia o temperamento da prima. Quero que leveis uma carta para vossa proteção. É tudo perigoso nos caminhos e nas Minas. Além do mais, talvez preciseis de ajuda. Tenho um grande amigo lá, o Pedro Raposo. Procurai-o em meu nome. Raposo é o regente de Rio das Mortes, e logo vai ser nomeado superintendente, a maior autoridade nas Minas, que cuida de cobrar os quintos, toma conta aos guardas-mores e administra no cível e no criminal, prende os assassinos, os malfeitores. É um homem de grande suposição, sincero, respeitado, que ajuda todos sem esperar nada em troca. É acaso esse Raposo um anjo do céu?
Não chega a tanto. Fernando curvou-se e escreveu a carta; a pena rangia no papel. Espalhou areia finíssima cor de ouro com intuito de secar a tinta. Soprou a areia sobre as letras, que ficaram douradas. Leu em voz alta: e para ser cumprida inteiramente mandei passar a presente por mim assinada e selada com o selo grande das armas do governador de sua majestade dada na cidade do Rio de Janeiro aos sete dias de Julho do ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1707. O governador. Selou a carta e dourou o selo. A areia brilhante pousava no seu casaco acamurçado». In Ana Miranda, O Retrato do Rei, Editora Schwarcs, Companhia das Letras, 1991, ISBN 978-857-164-190-7.

Cortesia de ES/CdasLetras/JDACT