Cortesia
de wikipedia e jdact
Holanda.
1629
«(…)
Perfeitamente, Alteza. Heer Van
Dorth... Que o Senhor o tenha em glória... Concedeu-me essa honra quando
Jacob... Digo, quando o almirante Jacob Willekens retornou a Amesterdão, conforme
previa o nosso contrato. Tu ficaste. Fiquei, Alteza. E pode Vossa Nobreza
acreditar: dei o melhor de mim. Mas quando aquele anão desgraçado...
Perdoai-me. Quando o senhor da Casa da
Torre chacinou oitocentos dos nossos homens em Tatuapara...
Quando consegui fugir e encontrar a minha outra guarnição no Rio Vermelho...
Guarnição a essa altura reduzida a poucos pilotos e mareantes... Quando fiquei sabendo
que Heer Van Dorth, mais
o Allert... Digo, o major Allert Schouten... Haviam sido trucidados, e que os
homens remanescentes estavam sob o comando do tenente Willem... Decidi rumar
para a cidade da Bahia. Contudo, a falar a verdade... Perdoai-me. Estava
cansado. Cinco noites quase insones, depois de passar quatro dias correndo pela
mata, derrubaram-me. Quando finalmente despertei... Eram muitos, Alteza! Bem
mais de meia centena de navios portugueses e espanhóis.
Enquanto eu dormia, um piloto tomara a iniciativa. A bruma do amanhecer nos protegia.
Que podia eu fazer, com uma única fragata, que não tentar poupar a vida dos
poucos homens que me haviam restado? Fugi, sim, e os olhos do Foca de Cavanhaque marejaram.
Fugi, Alteza, e arrastei a minha vergonha por mais de três anos, até que a boa
deusa da fortuna finalmente voltou a me sorrir e deparei-me no Caribe com os
galeões espanhóis do carregamento de prata.
Compreendo, anuiu
Frederik Hendrik que, se não conseguia abarcar aquela aventura inteira, ao
menos percebia estar diante de um homem cuja coragem o havia transformado em herói
popular. Não falemos mais disso. Como diz as nossas gentes, quando o coração
está cheio, a boca transborda. Vamos lá, homem, alegra-te. Chamei-te cá por
outra razão. Constantino... O jovem secretário apressou-se em trazer um papel
de cânhamo, enrolado à guisa de um diploma. Então, senhor. Como príncipe de
Orange e Stadhouder das
Províncias Unidas, e com gestos pomposos ofereceu ao outro o canudo, aqui tens
o nosso reconhecimento. O reconhecimento do povo batavo, pelos bons serviços
que prestaste à pátria. Sabes ler? Um pouco, Alteza. Não importa. O que diz
este diploma é que Piet Pieterszoon Hein foi
nomeado vice-almirante da Marinha das Províncias Unidas. Não mais a serviço da WIC. A meu serviço. Alteza...
O valoroso homenzinho
abaixou a vista, estendeu a mão trémula para o certificado e o vaso de lágrimas
finalmente transbordou. Para alguém como ele, filho de um pescador de arenques
que, desde os nove anos de idade, fora iniciado na labuta de combater os espanhóis,
ver-se na posição de vice-almirante da Marinha, a serviço do príncipe de Orange
e Stadhouder das Províncias
Unidas, era muito mais do que pudera algum dia sonhar. Vamos lá, homem. Chega
de comoção. Que idade tens, senhor Heyn? Completei cinquenta e um invernos a 25
de Novembro, sussurrou o outro, enxugando o canto dos olhos com a ponta do dedo
indicador. Mesmo no dia do apresamento da frota de prata.
Interessante coincidência.
Muitas guerras, pois não? Nem sei quantas, Alteza. Foste devidamente recompensado.
É tempo de descansar. Ainda não. Por especial mercê. Tenho uma dívida de gratidão
a pagar. Frederik Hendrik não planeara uma reacção daquelas. Quarentão bon-vivant, figura de proa do melhor
e mais divertido que a vida pode proporcionar, não conseguia compreender gente
simples daquele naipe. É verdade que, antes de pendurar a armadura, como
gostava de dizer, na sua arrogância de venerado homem de armas, o irmão Maurício
o submetera a infindáveis sessões de reprimendas e aconselhamentos. Colocara-lhe
sobre os ombros todo o peso de dar continuidade a uma dinastia que, há meio século,
lutava pela independência de um país. Legara-lhe um óptimo secretário, alguns
bem treinados generais, um condescendente Pensionário.
Obrigara-o até a se
casar, sob pena do Parlamento não o aprovar como Stadhouder. Mas é facto que, quase quatro anos passados
desde a morte do irmão, afora os graves problemas externos, das sete Províncias
Unidas, duas ainda não reconheciam plenamente a sua autoridade. Já o acto
de heroísmo daquele homenzinho... Careço fazer uma confissão, Alteza, a voz de
Piet chegava de longe, quase como um sussurro. Confissão?, despertou Frederik,
recompondo-se e esforçando-se para aparentar bom humor. Sou príncipe e
calvinista, não clérigo papista.
Mas dize lá. O que te aflige? O apresamento da armada espanhola... Não é mérito
apenas meu. Patente que não. Teus homens? Não te preocupes. Já cuidamos disso.
A Companhia vai pagar a cada um deles nada menos que dezassete soldos. Dezassete
mensalidades extras! Um belíssimo prémio, pois não?
Sem dúvida. Muita
generosidade de Vossa Alteza. Contudo... Em boa verdade, não devo a vitória
apenas aos meus homens, e Piet baixou a vista, como se envergonhado. Teve
uma... Teve uma mulher no meio. Uma mulher? Ora, não me digas! Espantoso. Ainda
assim, deixemos isso para depois. Por ora, quero que apareças comigo numa
daquelas janelas. Constantino... O arauto já fez saber ao povo a honra que
concedi ao senhor Heyn? Pelo alarido que nos chega lá de fora, creio que sim,
Alteza. Óptimo. Acompanhe-me, senhor». In Aydano Roriz, A Guerra dos Hereges,
Editora Europa, 2010, ISBN 978-857-960-043-2.
Cortesia
de EEuropa/JDACT