segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

A Guerra dos Hereges. Aydano Roriz. «Colocara-lhe sobre os ombros todo o peso de dar continuidade a uma dinastia que, há meio século, lutava pela independência de um país»


Cortesia de wikipedia e jdact

Holanda. 1629
«(…) Perfeitamente, Alteza. Heer Van Dorth... Que o Senhor o tenha em glória... Concedeu-me essa honra quando Jacob... Digo, quando o almirante Jacob Willekens retornou a Amesterdão, conforme previa o nosso contrato. Tu ficaste. Fiquei, Alteza. E pode Vossa Nobreza acreditar: dei o melhor de mim. Mas quando aquele anão desgraçado... Perdoai-me. Quando o senhor da Casa da Torre chacinou oitocentos dos nossos homens em Tatuapara... Quando consegui fugir e encontrar a minha outra guarnição no Rio Vermelho... Guarnição a essa altura reduzida a poucos pilotos e mareantes... Quando fiquei sabendo que Heer Van Dorth, mais o Allert... Digo, o major Allert Schouten... Haviam sido trucidados, e que os homens remanescentes estavam sob o comando do tenente Willem... Decidi rumar para a cidade da Bahia. Contudo, a falar a verdade... Perdoai-me. Estava cansado. Cinco noites quase insones, depois de passar quatro dias correndo pela mata, derrubaram-me. Quando finalmente despertei... Eram muitos, Alteza! Bem mais de meia centena de navios portugueses e espanhóis. Enquanto eu dormia, um piloto tomara a iniciativa. A bruma do amanhecer nos protegia. Que podia eu fazer, com uma única fragata, que não tentar poupar a vida dos poucos homens que me haviam restado? Fugi, sim, e os olhos do Foca de Cavanhaque marejaram. Fugi, Alteza, e arrastei a minha vergonha por mais de três anos, até que a boa deusa da fortuna finalmente voltou a me sorrir e deparei-me no Caribe com os galeões espanhóis do carregamento de prata.
Compreendo, anuiu Frederik Hendrik que, se não conseguia abarcar aquela aventura inteira, ao menos percebia estar diante de um homem cuja coragem o havia transformado em herói popular. Não falemos mais disso. Como diz as nossas gentes, quando o coração está cheio, a boca transborda. Vamos lá, homem, alegra-te. Chamei-te cá por outra razão. Constantino... O jovem secretário apressou-se em trazer um papel de cânhamo, enrolado à guisa de um diploma. Então, senhor. Como príncipe de Orange e Stadhouder das Províncias Unidas, e com gestos pomposos ofereceu ao outro o canudo, aqui tens o nosso reconhecimento. O reconhecimento do povo batavo, pelos bons serviços que prestaste à pátria. Sabes ler? Um pouco, Alteza. Não importa. O que diz este diploma é que Piet Pieterszoon Hein foi nomeado vice-almirante da Marinha das Províncias Unidas. Não mais a serviço da WIC. A meu serviço. Alteza...
O valoroso homenzinho abaixou a vista, estendeu a mão trémula para o certificado e o vaso de lágrimas finalmente transbordou. Para alguém como ele, filho de um pescador de arenques que, desde os nove anos de idade, fora iniciado na labuta de combater os espanhóis, ver-se na posição de vice-almirante da Marinha, a serviço do príncipe de Orange e Stadhouder das Províncias Unidas, era muito mais do que pudera algum dia sonhar. Vamos lá, homem. Chega de comoção. Que idade tens, senhor Heyn? Completei cinquenta e um invernos a 25 de Novembro, sussurrou o outro, enxugando o canto dos olhos com a ponta do dedo indicador. Mesmo no dia do apresamento da frota de prata.
Interessante coincidência. Muitas guerras, pois não? Nem sei quantas, Alteza. Foste devidamente recompensado. É tempo de descansar. Ainda não. Por especial mercê. Tenho uma dívida de gratidão a pagar. Frederik Hendrik não planeara uma reacção daquelas. Quarentão bon-vivant, figura de proa do melhor e mais divertido que a vida pode proporcionar, não conseguia compreender gente simples daquele naipe. É verdade que, antes de pendurar a armadura, como gostava de dizer, na sua arrogância de venerado homem de armas, o irmão Maurício o submetera a infindáveis sessões de reprimendas e aconselhamentos. Colocara-lhe sobre os ombros todo o peso de dar continuidade a uma dinastia que, há meio século, lutava pela independência de um país. Legara-lhe um óptimo secretário, alguns bem treinados generais, um condescendente Pensionário.
Obrigara-o até a se casar, sob pena do Parlamento não o aprovar como Stadhouder. Mas é facto que, quase quatro anos passados desde a morte do irmão, afora os graves problemas externos, das sete Províncias Unidas, duas ainda não reconheciam plenamente a sua autoridade. Já o acto de heroísmo daquele homenzinho... Careço fazer uma confissão, Alteza, a voz de Piet chegava de longe, quase como um sussurro. Confissão?, despertou Frederik, recompondo-se e esforçando-se para aparentar bom humor. Sou príncipe e calvinista, não clérigo papista. Mas dize lá. O que te aflige? O apresamento da armada espanhola... Não é mérito apenas meu. Patente que não. Teus homens? Não te preocupes. Já cuidamos disso. A Companhia vai pagar a cada um deles nada menos que dezassete soldos. Dezassete mensalidades extras! Um belíssimo prémio, pois não?
Sem dúvida. Muita generosidade de Vossa Alteza. Contudo... Em boa verdade, não devo a vitória apenas aos meus homens, e Piet baixou a vista, como se envergonhado. Teve uma... Teve uma mulher no meio. Uma mulher? Ora, não me digas! Espantoso. Ainda assim, deixemos isso para depois. Por ora, quero que apareças comigo numa daquelas janelas. Constantino... O arauto já fez saber ao povo a honra que concedi ao senhor Heyn? Pelo alarido que nos chega lá de fora, creio que sim, Alteza. Óptimo. Acompanhe-me, senhor». In Aydano Roriz, A Guerra dos Hereges, Editora Europa, 2010, ISBN 978-857-960-043-2.

Cortesia de EEuropa/JDACT