segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

A Biblioteca Desaparecida. Luciano Canfora. «… exactamente como pensava Ptolomeu, ao escrever a Eleazar que muitos judeus haviam sido postos no comando de guarnições…»

Cortesia de wikipedia e jdact

O Banquete dos Sábios
«(…) Quantos milhares julgas que são?, perguntou Ptolomeu dirigindo-se a André (referindo-se aos judeus, não aos rolos). E este, prontamente, pois nada indiferente à questão: pouco mais de 100 mil. Pede pouco o bom Aristeu!, comentou Ptolomeu com ironia, dispondo-se por outro lado ao consentimento, em vista da disposição favorável dos seus dois fidelíssimos. Os prisioneiros foram libertados sob indemnização, paga aos senhores pelo banco real. E foram contemplados não só os prisioneiros capturados pelo Sóter na campanha da Síria, mas todos os judeus já antes residentes ou deportados para o Egipto antes ou depois dessa campanha. E nossa convicção, determinava o édito de libertação, que estes foram reduzidos à escravidão contra a vontade do nosso pai e contra qualquer conveniência, apenas pelo descomedimento da soldadesca. Dessa forma, a providência evitava censurar a conduta do soberano anterior.
A libertação dos judeus deportados foi, para Ptolomeu, como que uma credencial junto a Eleazar, sumo-sacerdote de Jerusalém. Restituímos a liberdade a mais de 100 mil judeus, anuncia ele na mensagem em que solicita o envio de tradutores especializados; os mais válidos recrutamos para o exército; os aptos a tomarem lugar ao nosso lado, demonstrando-se dignos da confiança que se exige em homens da corte, colocamo-los na burocracia. Resolvemos fazer algo de bom a esses e a todos os outros judeus, prosseguia, nas diversas partes do mundo, e a todos os que virão depois, e por isso decidimos mandar traduzir a vossa lei do hebraico para o grego, para que tenha lugar na nossa biblioteca ao lado dos outros livros do rei. Eleazar respondeu com entusiasmo à oferta do rei, augurando bons votos a ele e à rainha Arsinoé, sua irmã e esposa, e a seus filhos, e saudando-o como sincero amigo. A carta de Ptolomeu foi lida em público, informa Aristeu, que com o amigo André dirigia a delegação saída de Alexandria.
Com a sua visita a Jerusalém, Aristeu teve interessantíssimas impressões, como, por exemplo, a visão do sumo sacerdote no esplendor do seu solene aparato. Judeu da diáspora, deve ter retirado do encontro com as suas raízes motivos para uma autêntica emoção. Impressionaram-no as pequenas dimensões de Jerusalém, comparadas à enormidade de Alexandria, a cidade onde sempre vivera. Prudente e sensato como sempre, nisso se inspirou para uma reflexão até demasiado complacente para com a política interna dos Ptolomeus: se no Egipto, pensou ele, o povo do campo, isto é, os locais, não tinha permissão de permanecer na cidade por mais de vinte dias, isso se compreende e se justifica pelo facto de que ao soberano interessa que não decaia a agricultura em consequência de um êxodo excessivo dos camponeses. A sua ideia é que judeus e gregos, juntos, estão destinados a governar, ao passo que os egípcios devem ser mantidos no seu lugar: exactamente como pensava Ptolomeu, ao escrever a Eleazar que muitos judeus haviam sido postos no comando de guarnições, com soldos mais altos para incutir temor á raça egípcia.
O encontro dos dois povos dirigentes foi como que selado pela acolhida reservada por Ptolomeu à delegação dos 72 eruditíssimos judeus, escolhidos em número de seis para cada tribo de Israel. Por sete dias prolongou-se o banquete em honra deles, e para o soberano foi a ocasião para refinar a sua educação política, através de uma subtilíssima casuística que não negligenciou nenhum, nem mesmo o mais negligenciável, problema relativo à realeza. Sinal de que o conselho de Demétrio de providenciar os livros sobre a realeza e lê-los não fora de forma alguma, infrutífero. O rei atormentava os sábios comensais com torrentes de perguntas, na base de dez por dia. Como conservar o reino?, perguntava. Como ter o assentimento dos amigos? Como conseguir aprovação, nos processos, justamente dos que se viam frustrados? Como transmitir o reino intacto aos herdeiros? Como enfrentar com equilíbrio, os imprevistos?» In Luciano Canfora, A Biblioteca Desaparecida, Histórias da Biblioteca de Alexandria, 1986, Companhia das Letras, 1989,ISBN 978-857-164-051-1.

Cortesia de CdasLetras/JDACT