A
pedra do exílio
Planalto
de Crécy. 26 de Agosto de 1346
«(…)
Temos de ir, disse Vermandois, espetando um pontapé num gato que se
aproximara a ronronar. Maynard anuiu. Levantara-se de madrugada para carregar
as peças da armadura na égua. Nessa noite dormira pouco. Aproveitava o ar
matinal para despertar e afastar a preocupação. Desde que o rapaz lhe falara no
indivíduo da capa preta, os seus pensamentos desviavam-se permanentemente para
a figura escondida na penumbra da sacristia, fomentando em si o receio de uma
emboscada. No entanto, havia outra razão pela qual não conseguia ficar parado.
Embora continuasse a desconhecer o significado do enigma do Lapis exilii, lembrara-se
finalmente do local onde ouvira as palavras contidas no primeiro verso do
pergaminho. Ocorrera sob uma arcada de pedra, diante de um livro aberto numa
estante de igreja... Em Reims, no convento onde se encontrava encerrada a sua
irmã Eudeline. Estou quase pronto, disse ao companheiro, dando-lhe uma palmada no ombro.
Recuperastes rapidamente. O picardo analisou o seu aspecto, agradado. Ainda
bem, meu amigo, visto que podemos pôr-nos a caminho com o séquito de sua majestade.
Que honra, murmurou o cavaleiro, passando à verificação da sela do cavalo
negro. Ainda coxeava, mas conseguia manter-se em equilíbrio sem o
cajado. Vermandois emitiu um grunhido. A honra de quem foge com o rabo entre as
pernas, e aproximou-se do cavalo preto, desgrenhando-lhe a crina.
Também vos dirigis a Paris? Antes de responder, Maynard apertou as correias que fixavam os estribos. Seguirei com o
séquito até ao condado de Beauvais e depois avançarei para levante. Para Reims,
imagino. Os vossos feudos esperam-vos. Os feudos não, mas uma pessoa muito
querida. Os olhos do picardo semicerraram-se. Uma longa viagem, e ainda agora
acabais de recuperar. Não queirais fazer de minha ama, acrescentou
Rocheblanche, aproveitando o ensejo. Já vos estou suficientemente grato. Robert
Vermandois tentou esconder o embaraço.
Na verdade, meu amigo, aproveitarei a vossa companhia para desfrutar de um
pouco de hospitalidade. Como sabeis, não possuo terra nem família para as quais
regressar. Maynard observou a sua expressão sem se fazer notar, imaginando
quanto lhe teria custado semelhante confissão. O barão descendia de uma
linhagem muito antiga, de origens quase lendárias. No entanto, tendo ficado
viúvo, vira os familiares da esposa dissipar os seus bens. Privado de feudos e
de dinheiro, dizia-se que vivia recolhido num castelo à espera
de aventuras guerreiras. Não tenho intenção de ficar na minha habitação,
sorriu, conciliador. Assim sendo, ter-vos ao meu lado será um privilégio. Dito
isto, terminou os preparativos fixando ao arção uma longa espada de corte,
recuperada do acampamento para substituir a que perdera em batalha, e prendeu à
cintura a espada de estoque, de lâmina mais curta e pesada. Combinou assim caminhar perto do rapaz. Mal o conhecia,
ignorava o seu nome, mas nutria por ele um sentimento de reconhecimento que
pretendia recompensar, salvando-o da miséria. Desejava mantê-lo na sua companhia para fazer dele um palafreneiro ou um escudeiro. Contudo,
depois de procurar por todo o acampamento, teve de renunciar ao propósito.
Parecia ter desaparecido por completo.
Conformado a partir sem o rapaz, Maynard apressou os últimos preparativos.
Entretanto, pensou na sua casa, nos escassos feudos herdados do pai e na irmã,
a única sobrevivente da família. Não a via há mais de um ano, e o pensamento de voltar a abraçá-la fazia com que as suas preocupações abrandassem.
Como determinado, pôs-se a caminho com Vermandois no séquito do rei, com os
nobres de elevado estatuto e com os religiosos: um privilégio a que teria
voluntariamente renunciado, quanto mais não fosse pelo facto de
uma companhia bem guarnecida gozar da vantagem de desencorajar as emboscadas
dos mais ousados exploradores de Eduardo III. Na
sua maior parte, os homens da comitiva deslocavam-se a cavalo, entregando a
mulas e a outros animais de carga o peso das armas e das
armaduras. Não faltavam carros, utilizados principalmente para transportar as
figuras de maior estatuto». In Marcello Simoni, A Abadia dos Cem Pecados, 2014,
tradução de Inês Guerreiro, Clube do Autor, 2016, ISBN 978-989-724-278-6.
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