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Lisboa, 22 de Junho de 1995
Mary
«(…) Em casa do meu futuro sogro,
onde era maioritário o sentimento pro-germânico, havia queixumes semelhantes de
sentido oposto. Luís e António, irmãos de Carminho e ambos militares,
costumavam demonstrar-me a sua irritação por Salazar oferecer tantas
facilidades aos ingleses. Um inglês com compreensão pelos nazis, comentou
cinicamente Mary. Se estivesses em Londres, eras preso por traição à pátria. Sorri.
A natureza transitória da casa de
Mary era evidente. Não existiam quadros nas paredes, os móveis eram poucos e
não estavam cobertos de bibelots. Era uma casa desocupada onde, por acaso, duas
pessoas dormiam. Na sala, um sofá e duas solitárias cadeiras esperavam-nos. Mary
dirigiu-se a um armário vazio, retirou uma garrafa de brandy e dois copos e
perguntou: queres um charuto para acompanhar? Não recusei a oferta. O meu pai
tinha estranhos rituais com os charutos, que sempre me haviam fascinado na
infância, e no início da idade adulta ensinara-me, como se me estivesse a transmitir
um ancestral segredo de família. Acho que aprendi muito com ele, e talvez tenha
herdado uma costela de patife e outra de cavalheiro daquele velho pirata. E a
expressão velho pirata aplica-se-lhe bem, a sua companhia de navegação
praticava mais pirataria do que comércio... Acendi o charuto, enquanto reparava
no exemplar da revista A Esfera, pousado no sofá. A ler a propaganda inimiga,
Mary? Folheei a revista. Na capa, uma imagem de Hitler e, na contracapa, outra
de Salazar. Ambos os textos eram apologéticos. Não se trata de defendê-los, mas
sim de compreender que em Lisboa há muita gente que gosta dos alemães. Isso é
porque esta gente não foi bombardeada.
Notei desprezo na sua voz. Acho
que, pelo facto de ter sofrido os bombardeamentos, Mary se considerava superior
aos portugueses. Como se isso lhe desse uma vantagem moral antropológica. A
Salazar se deve, relembrei. Tem conseguido manter Portugal fora da guerra. Para
isso, tem de se dar bem connosco, mas também com os nazis. Enquanto negoceia a
sua posição o melhor que pode. No seu lugar, faria o mesmo. Aliás, os
portugueses vendem-se a qualquer um, continuou Mary. Dos criados de hotel aos
polícias. É só abanar com umas libras e fazem tudo o que lhes pedirmos. A sua
mordacidade era compreensível. Na Lisboa de 1941, era difícil encontrar gente
de confiança. Pobres, e ainda atarantados com a chegada de tantos refugiados de
guerra, os portugueses viam nos ingleses e nos alemães uma forma rápida de
ganharem uns tostões. O James também se está sempre a queixar, acrescentou ela.
Diz que só os comunistas é que não são corruptos. Esses ajudam por convicção.
Portanto, o coronel Bowles andava
mesmo a falar com os comunistas e, portanto, a PVDE devia tê-lo debaixo de
olho. Os comunistas assustavam Salazar, e nem o facto de Estaline ter assinado
um pacto de não-agressão com os nazis acalmava os receios. As pessoas haviam ficado
confundidas quando, em 1939, o surpreendente pacto Ribbentrop-Molotov congelara
os ódios antes tão declarados entre fascistas e comunistas. À superfície, mesmo
nos jornais afectos ao regime de Salazar, não se liam tantas prosas dedicadas a
diabolizar o perigo vermelho, os horríveis bolcheviques que perseguiam a Santa
Madre Igreja. Mas as suspeitas continuavam bem vivas. Este período anormal de
acalmia, que deixou os comunistas desmoralizados e até paralisados, iria acabar
em Junho de 41, quando Hitler invadiu a União Soviética. Meses mais tarde, as
ligações do coronel Bowles aos comunistas iriam provar-se extremamente
perigosas. Mas, naquela noite do ciclone, só Mary vivia preocupada com o marido.
Por estes dias, não há muitos comunistas convictos, relembrei. Mas continuam
bem organizados. O James tem andado a falar com eles. Mary insistia no tema,
por isso mostrei interesse: para quê? Ela deu mais um gole no brandy. Os seus
olhos verdes brilhavam. Diz que anda a preparar o país para a invasão dos
nazis! Deu uma gargalhada. Anda à procura de locais para esconder explosivos,
rádios, sei lá que mais! Está mesmo convencido de que o Hitler vai invadir a
Península». In Domingos Amaral, Enquanto Salazar Dormia, 2006, Casa das Letras,
2013, ISBN 978-972-462-174-6.
Cortesia
de CdasLetras/JDACT