domingo, 16 de fevereiro de 2020

João II. Crónica Esquecida. Seomara Veiga Ferreira. «Pelo início do ano seguinte o duque de Bragança, o filho do rancoroso e velho Barcelos, adoeceu gravemente. Não era antipático. Até boa pessoa, pois não herdara o feitio cruel e conflituoso do pai…»

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A morte de Lancelot
«(…) Todas as qualidades que não servem em política. Acusaram-no, os Braganças, de desejar a morte do pai, até de o ter envenenado, como em Castela anunciou bem alto, depois do drama de Évora, o Montemor. Não creio. Que ele amava o pai é indiscutível. Eu sei. Todos o sabem e Antão Faria, Pina, Resende, a irmã, a tia Filipa que ele visitava amiúde para ouvir falar da mãe e do avô, confirmaram-no sempre. Mas queria o poder. É justo. É normal. Desejava ardentemente testar as suas capacidades e reformar as estruturas judicial, administrativa, económica, política do seu país. Com o pai vivo, isso seria impossível. A extensão do império colonial exigia uma gigantesca tarefa, uma nova concepção do poder real, a centralização das forças vivas da nação nas mãos do Monarca. Com Afonso isso seria completamente inviável, fora de questão. Nem mesmo reria compreendido. A força colocada nas mãos do Rei torná-lo-ia forte para a defesa da nação e das classes populares. João compreendeu cedo que por inimigos, como o avô, tinha apenas a alta nobreza, o que sucedia, aliás, em todo o lado e a França, com a labiríntica acção política daquele Rei Luís, que comera as papas na cabeça do seu pai, era bem um exemplo típico... Com João passou-se o que acontece no choque inevitável entre os filhos e os pais, por muito que estes sejam amados. Geralmente na doença, numa prolongada doença. Por mais amor que exista, a velhice é cansativa e cruel e, por muito que os filhos amem os progenitores, um dia, embora receiem esse terrível momento, também anseiam por ficar livres. A liberdade ganha-se sempre à custa de qualquer coisa. João sabia-o, como compreendia que a fraqueza do pai era a grande doença mortal daquele homem de quarenta e cinco anos, prematuramente envelhecido. Castela e Aragão continuavam a fazer escoar o que restava do erário público numa guerra sem fim. As Coroas de Portugal e Castela seriam unidas sob a égide de Portugal, mas isso levaria tempo e, no meio da questão, além disso tudo, estava aquele pai Rei, inconsciente de seus deveres, cavaleiro de eras devolutas, num mundo em mudança, inexorável e cruel. Ora a missão do Rei é divina e consiste na defesa intransigente do seu povo, da pátria, da nação. Não iria afastar-se nunca dessa missão. Sei tudo o que ele pensou. Só lamento que nesse jogo terrível estivesse, a partir de determinada altura, comprometida a minha alma pelo amor e o desespero.
Logo em Janeiro de 1471, nas Cortes de Montemor, o Príncipe explanara a necessidade da geral reformação do Estado. A carta do pai punha-o num dilema. Enviou o seu querido Antão Faria a França, em sigilo. A decepção do Rei e os seus desgostos convenceram o fiel camareiro do Príncipe... O duque de Bragança opunha-se à abdicação e, com ele, toda a nobreza, mas o Rei decidira e tinha-se de lhe obedecer, pois assim era a realidade de momento.
João é aclamado em Santarém, no Paço de São Francisco, em Novembro. O Rei não voltaria. A nobreza amava Afonso e o povo também, por motivos diferentes, mas o Rei era generoso e a todos custava o desfecho. Â 14 de Novembro Afonso escreve ao filho de França. Volto para Portugal, regresso ao Reino. Mais uma vez a nobreza, em terra estrangeira, aconselhara-o ao volta-face. O filho, como sempre, nada disse. Não acredito que se tenha aconselhado com ninguém. O que correu por aí (lá no Reino) foi que ele perguntara ao Bragança como o deveria receber, ao pai, e ele lhe respondera rispidamente: como quereis que o seja? Como pai e como Rei! João não perguntou, até porque não valia a pena. Conhecia as respostas e sabia melhor que ninguém que não poderia jamais impor o seu programa político com o pai vivo a custodiar a nobreza. Afonso abraçou-o comovido, à chegada, em Oeiras, e ficou encantado quando o filho, ajoelhado, recusou a coroa e até a divisão, pois Afonso propôs ficar Rei dos Algarves apenas. Tudo voltava à mesma com a diferença de que era necessário fazer a paz com Castela.
Pelo início do ano seguinte o duque de Bragança, o filho do rancoroso e velho Barcelos, adoeceu gravemente. Não era antipático. Até boa pessoa, pois não herdara o feitio cruel e conflituoso do pai, mas adoeceu e perderam-se as esperanças de o salvar. Sangraram-no até ficar exangue, discutiram, fizeram-no emborcar mezinhas... Nada feito. Sobreveio-lhe uma apoplexia que o deixara desfeito mentalmente. As sangrias já de nada lhe valiam. Tinha setenta e cinco anos de idade e por lá se finou, em Vila Viçosa, no primeiro dia de Abril. Foi pintado também, então homem mais novo, dos seus sessenta anos, nuns painéis que estavam na Catedral ou no Convento de S. Vicente, já não recordo bem, que estiveram alguns meses a ser pintados no armazém do município por ordem de El Rei Afonso e onde quis que ficassem gravados seus familiares e figuras gradas do Reino. Recordo-me do velho Duque. Com o seu rosto queimado pelo sol do Alentejo, o bigodão ainda preto e um certo ar de bonomia, apesar do olhar pesado e escuro. O filho, cunhado do Príncipe, tinha então quarenta e oito anos. Estivera com Afonso em todos os grandes momentos do Reino». In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.
                                                                                 
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