quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

Às Portas do Inferno. Domingos Amaral. «Desde essa longínqua data que era um fiel soldado de Fernão Peres Trava, acompanhando as andanças do amo. Por isso, aceitara aquele repto, em Viseu, na Páscoa de há seis anos»

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Soure. Julho de 1132
«(…) A princesa forçou um sorriso e depois seguiu o seu caminho, enquanto o Velho permanecia parado, pois ainda não acreditava no que tinha visto debaixo da túnica da princesa. Ela bem tentara esconder um objecto, mas ele tinha bom olho e o que ela levava era de grande valor. Decidiu segui-la, talvez tivesse um momento de sorte... Agitada, Zaida foi à casa onde vivia, entrou, mas pouco depois voltou a sair e regressou à biblioteca da Sé, sem nada no regaço. Durante algum tempo, o Velho esperou, mas ela não reapareceu. Então, deu meia-volta e dirigiu-se à casa das princesas. Se conseguisse roubar aquele objeto, certamente que o Trava iria ficar muito contente… Fora por essas e por outras que Fernão Peres lhe destinara uma missão tão difícil. Ele era o homem necessário, o espião indicado. Conhecia Soure e a região ao sul da povoação, pois no passado já fizera parte da guarnição do castelo, na época dos cercos a Coimbra realizados pelo califa almorávida Ali Yusuf.
Desde essa longínqua data que era um fiel soldado de Fernão Peres Trava, acompanhando as andanças do amo. Por isso, aceitara aquele repto, em Viseu, na Páscoa de há seis anos, quando o nobre galego lhe explicou que uma nova ordem religiosa iria reconstruir o Castelo de Soure e procurar uma relíquia sagrada. Sereis os meus olhos e os meus ouvidos, dissera o Trava. Apresentando-se como um antigo combatente caído em desgraça, o Velho alistara-se no primeiro contingente de monges guerreiros da Ordem do Templo, onde já estavam o Rato e o Peida Gorda, e aos quais se somara, dias depois, o jovem Ramiro, bastardo de Paio Soares. O grupo havia iniciado a recuperação de Soure e, durante seis verões e seis invernos, o Velho permanecera por lá.
Apenas por uma vez vira a bruxa Sohba, por quem nutria um forte ódio, pois um dia ela atirara-lhe uma bola de fogo, quase o cegando. Desde essa data, jurara matá-la mal tivesse uma oportunidade, só que esta não surgira. A sinistra mulher de negro eclipsara-se e, portanto, o Velho limitara-se a fazer o seu trabalho secreto para o Trava, informando-o sobre o que se passava na região. Obviamente, soubera com antecedência da expedição galega às ruínas próximas do Nabão e, quando vira os corpos massacrados pela barbárie de Abu Zhakaria, sabia já como proceder. As suas ordens eram claras: se a companhia de soldados galegos não atingisse os seus propósitos, o Velho deveria abandonar a Ordem e subir à Galiza. Assim fizera, dissimulando aquela queda e despedindo-se dos colegas templários. Contudo, por diversas vezes no decorrer daqueles anos a sua longa mrissão parecera-lhe inútil, e só agora, já perto do fim, surgia uma oportunidade única!
Enquanto se aproximava de casa de Zaida, o Velho questionou-se mentalmente. No regaço da princesa, vira o punhal de Paio Soares, uma bela arma, com uma pérola no topo, com a qual Afonso Henriques matara o assassin no casão do almocreve Mem. Como se apoderara a princesa da célebre e desaparecida arma? Enquanto vigiava os movimentos dentro da casa dela, o Velho recordou-se do dia da morte de Zulmira». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, A Vitória do Imperador, Casa das Letras, LeYa, 2016, ISBN 978-989-741-461.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT