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e wikipedia
«(…)
Toda antologia deve impôr-se limites e regras; a nossa se impôs a regra de apresentar
um só texto de cada autor, regra particularmente cruel quando se trata de
escolher uma única narrativa para representar todo o Hoffmann. Escolhi o mais
típico e conhecido (porque é um texto que podemos chamar de obrigatório), O
Homem de Areia, em que personagens e imagens da tranquila vida burguesa se
transfiguram em aparições grotescas, diabólicas, assustadoras, como nos sonhos
ruins. Mas eu também poderia ter me concentrado num Hoffmann em que o grotesco
está quase ausente, como em As minas de Falun, no qual a poesia
romântica da natureza toca o sublime com o fascínio do mundo mineral. As minas
em que o jovem Ellis submerge a ponto de preferi-las à luz do sol e ao abraço
da esposa são um dos grandes símbolos da interioridade ideal. E aqui está outro
ponto essencial que toda análise sobre o fantástico tem de levar em conta: qualquer
tentativa de definir o significado de um símbolo (a sombra perdida por Peter Schlemihl
em Chamisso, as minas onde se perde o Ellis de Hoffmann, o caminho dos judeus
em Die Majoratsherren, de Arnim) só faz empobrecer a sua riqueza de sugestões. A
fora Hoffmann, as obras-primas do fantástico romântico alemão são muitolongas
para entrar numa antologia que queira fornecer um panorama o mais extenso
possível. A medida de até cinqenta páginas é outro limite que me impus, o que
me forçou a renunciar a alguns dos meus textos prediletos, todos com adimensão
do conto longo ou do romance breve: o Chamisso de que já falei, Isabela do Egipto
e outras belas obras de Arnim, História de um vagabundo, de Eichendorff.
Na
França, Hoffmann exerce forte influência sobre Charles Nodier, sobre Balzac (tanto
o Balzac declaradamente fantástico quanto o Balzac realista, com suas sugestões
grotescas e nocturnas) e sobre Théophile Gautier, de quem podemos puxar uma
ramificação do tronco romântico que contará muito no desenvolvimento do conto
fantástico: o esteticismo.
Depois
de Hoffmann, Poe foi o autor que mais teve influência sobre o fantástico europeu,
e a tradução de Baudelaire devia funcionar como o manifesto de uma nova atitude
do gosto literário. Entretanto, os efeitos macabros e malditos de sua obra
foram recebidos mais facilmente por seus descendentes do que sua lucidez racional,
que é o traço distintivo mais importante desse autor. Falei antes de sua
descendência europeia porque em seu país a figura de Poe não parecia tão emblemática
a ponto de ele ser identificado com um género literário específico. Ao lado
dele, aliás, um pouco antes dele, estava outro grande americano, que havia
levado o conto fantástico a uma intensidade extraordinária: Nathaniel Hawthorne.
Em suma, a tradição do fantástico herdada por Poe e transmitida a seus descendentes,
que são na maioria epígonos e maneiristas (ainda que exuberantes nas cores da
época, como Ambrose Bierce), já estava madura. Até que, com Henry James, nos
encontraremos diante de uma nova virada. Na França, o Poe tornado francês por
intermédio de Baudelaire não tarda a fazer escola. O mais interessante desses
seus continuadores no âmbito específico do conto é Villiers de l'I sle Adam,
que em Vera nos dá uma eficaz mise-en-scène
do tema do amor que continua para além da morte; além disso, A tortura com
a esperança é um dos exemplos mais perfeitos de fantástico puramente mental». Organização
de Italo Calvino, Contos fantásticos do século XIX, O fantástico visionário e o
fantástico quotidiano, 1983, vários tradutores, Companhia das Letras, São
Paulo, 2004, ISBN 978-853-590-502-1.
Cortesia
da CdasLetras/JDACT