sexta-feira, 22 de julho de 2016

A Biblioteca Mágica de Bibbi Bokken. Jostein Gaarder e Klaus Hagerup. «Quando acabei de digerir todo o teu sarcasmo fiquei durante quase meia hora à janela olhando a chuva cair. Você não acredita em mim!»

jdact e wikipedia

«(…) Fiquei de tal maneira assustada que larguei o livro imediatamente como se queimasse. Nem sequer tive tempo para tomar nota do nome do autor. Pode me ajudar, Lilli? Se existe uma bibliógrafa na Noruega, uma só que seja, é você. E, na verdade, não se trata de encontrar quem escreveu um livro sobre uma biblioteca mágica, mas de encontrar quem, porventura, o está escrevendo ou se prepara para tal. Escapuli, literalmente, da loja com a desculpa de já estar atrasada para apanhar o comboio. Mas, no momento em que abria a porta para sair, voltei-me e perguntei ao antiquário quanto custava aquele raro exemplar. Ele ficou irritadíssimo, tinha que vê-lo! Arqueou as sobrancelhas e ladrou: quem lhe permite tamanha ousadia!? Os filhos mais queridos não se vendem... Só este volume custa mais do que qualquer incunábulo. Perguntei a mim mesma se o velho não seria surdo: falava um italiano algo confuso e parecia ler meus lábios quando eu falava. Perdoe-me por ter telefonado ontem à noite a uma hora tão tardia, mas estava completamente transtornada. Se eu conseguisse encontrar novamente o tal antiquário! É como se a terra o tivesse engolido. Cumprimentos, Siri. Campo dei Fiori 8 de Agosto de 1992

A carta dizia tudo isto, Nils. O que acha? De uma só vez roubei uma carta misteriosa e li às escondidas. E agora, como é que iria me desembaraçar dela? Você costuma me gozar porque ando sempre com o meu bloco de anotações no bolso. Bem sabe que eu gosto de tomar nota dos meus pensamentos mais inteligentes antes que me esqueça deles. E, desta vez, o bloco foi extremamente útil. Apressei-me a copiar a carta e, mal acabei, rastejei de novo até à casa amarela e coloquei o envelope no local onde o tinha encontrado. Cheguei a casa há cerca de meia hora. E agora que li a sua carta não me sinto minimamente mais tranquila, pois não me agrada a ideia de que ela tenha patrocinado o nosso epistolário com uma nota de mil. Sinto como se agora os nossos pensamentos fossem de sua propriedade. O que devo fazer? Creio que estamos perante algo de muito importante. Pelo menos, sabemos que a estranha mulher se chama Lilli. Pondo fé na carta, sabemos também que ela é uma bibliógrafa. Mas, que raio quer dizer isso é que eu não sei. E depois, o que é um incunábulo? Neste momento, tenho vontade de chorar, por isso, é melhor ficar por aqui. Acho que a tinta não se dá bem com a água. Vou já correndo ao correio para te enviar o caderno. Por favor, responda-me imediatamente! Cumprimentos da tua prima medrosa, Berit Boyum

É para já Berit!
Muito divertido. Muito divertido, mesmo. Um livro que foi publicado em 1993. Deve achar que eu sou idiota! Está bem que estamos escrevendo um epistolário, mas não é por isso que temos de inventar o que quer que seja. Se acha que me leva no bico por tão pouco está muito enganada. Eu sei que sou um ano mais novo e que tenho dez centímetros a menos, porém, não sou uma criança qualquer que engole a primeira história que lhe contam. Não caio nessa! Se quer que acredite na carta tem que me enviar a original. Não basta uma simples transcrição das fantásticas lendas do bloco de anotações de Berit Boyum. Pois muito bem, dei-me ao trabalho de procurar e descobri o significado de bibliógrafo e de incunábulo. Biblos é uma palavra grega que significa livro. Daqui deduzi que um bibliógrafo é uma pessoa apaixonada por livros, coisa que me parece algo perverso. Incunábulo vem de uma palavra latina, incunabula, que significa berço. Ou seja, essa tal Lilli é uma doida varrida por livros, e a tal fulana que lhe escreveu a carta descobriu um livro que ainda não está escrito mas que já é mais precioso do que um berço. Só posso acreditar em você. Oh, como acredito! Se te pareço sarcástico, tem toda razão. Hoje tive aula de ginástica com o maluco furioso do Homem de Ferro e, por isso, não tenho nenhuma vontade de rir. Agora, como bem pode imaginar, estou impaciente para ter em minhas mãos a verdadeira carta de Siri Campo dei Fiori. Tchau tchau, Nils

Querido (?) Nils.
Muito, muito triste!
Quando acabei de digerir todo o teu sarcasmo fiquei durante quase meia hora à janela olhando a chuva cair. Você não acredita em mim! Eu arrisco a minha vida por você ao surrupiar aquela maldita carta bem na frente da toca do lobo, e o teu único agradecimento é um simples tchau tchau e as fantásticas lendas do bloco de anotações de Berit Boyum. De repente, esta é a última vez que te escrevo. Se você não acredita naquilo que te conto, não tem sentido continuar. Pode ficar com o epistolário todo para você. Tem tanta podridão nesse cérebro que, com certeza, vai conseguir encher o caderno todo. Pelo menos, vai ter alguma coisa para cheirar quando for velho caduco (ah, ah!). Aliás, acho que não se esqueceu de que acabei de me transferir de Bergen e que prometi escrever a cerca de quinze ou vinte amigos. Além do mais, também tenho o meu diário pessoal, estritamente privado, no qual encontro sempre algo de novo para escrever. Por isso, pode deixar de considerar as tuas cartas como uma resposta ao anúncio procuram-se amigos desesperadamente, assinado garota só e abandonada nas altas montanhas do Sognefjord. E também não estou convencida de que você não acredita nem um pouco naquilo que te escrevi. Tem é medo de parecer estúpido, como todos os pequenos da tua idade. Diz o provérbio: quem não arrisca não petisca. Se não tivesse acreditado na tal carta misteriosa nem sequer teria se dado ao trabalho de ir procurar no dicionário o significado daquelas palavras esquisitas. Aliás, eu também me dei a esse trabalho. Passo a citar: bibliógrafo, pessoa que se ocupa de bibliografia, conhecedor de livros. Você confundiu, claramente, com bibliófilo, a pessoa que ama os livros. Cito novamente: bibliófilo, pessoa que ama os livros, que colecciona livros raros e preciosos. No que diz respeito a incunábulo, é verdade que significa berço, porém, actualmente, a palavra só se usa para indicar os livros que foram impressos até finais do século XVI. Passo a citar: incunábulo, livro impresso no período imediatamente a seguir à invenção da imprensa […] In Jostein Gaarder e Klaus Hagerup, A Biblioteca Mágica de Bibbi Bokken, Companhia das Letras, Seguinte, 2003, ISBN 978-853-590-370-6.

Cortesia da CdasLetras/Seguinte/JDACT