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«(…) Os vendavais, esses eram repentinos.
Na violência do seu sopro adivinhava-se o poder de espíritos malignos,
determinados a arrasar tudo. E aquela gente, que vivia ali sem capela, nem
sequer umas alminhas, só com a protecção de algum santo de calendário e das
medalhas penduradas nos rosários, corria a recolher os animais, agachava-se em
torno da lareira a rezar para que o Senhor se compadecesse. Vida de medo. O
avô, ouvi-o depois às suas irmãs, já de pequeno não era de rezas. Resmoneava
com os outros, por temor de que lhe assentassem algum tabefe se mostrasse falta
de respeito, mas assim que se fez rapaz deixou de rezar e não haveria força que
lhe mudasse a ideia.
A caça, as raparigas e os bailes, nessa ordem, eram a sua
paixão. Nenhuma distância lhe parecia grande, nenhum esforço o cansava, e se
havia festa numa aldeia da redondeza, deitava um saco de trigo aos ombros,
cinquenta quilos, e ia incansável ladeira abaixo, ladeira acima, a cantarolar
como era seu hábito. Até Carviçais, uma caminhada de três horas. Para Estevais
quatro. A Lagoaça sete. A Mós também sere. O saco de trigo entregava-o ele na
taberna, em penhor das rodadas de vinho e dos maços de cigarros, para retribuir
as cortesias dos amigos, parentes e conhecidos. De todos, afinal. Porque as aldeias,
chegadas ou longínquas, eram uma teia de laços de sangue e amizades.
Nesse tempo em que o correio era luxo
caro, pedia-se aos almocreves que dessem recomendações aos parentes de Chacim, a
dia e meio de jornada, que se visitavam quando muito uma vez por geração. Batia
à porta gente desconhecida, vizinhos de primos de Bemposta que iam de passagem
com gado para as feiras de Moncorvo, de Trancoso, da Pesqueira, e a quem era
natural que se desse ceia e dormida. Recebiam-se ofertas inesperadas: uma bôla
de carne, um cesto de doces, um frango, um presunto, um garrafão de vinho. Às
veres vindos não se sabia donde, nem de quem, porque tinham passado por tantas mãos
que o último portador se embrulhava no recado. Mandavam-se presentes aos
santos. Vós ides amanhã à festa de Vila Flor, ó Júlia? Então leva-me estes
paninhos e entrega-os lá à Nossa Senhora da Assunção. Não invento nem alindo. Era assim na vida
dos meus passados e era assim ainda na minha meninice. Costumes brandos, mas
não de todo desinteressados.
Na solidão das serras era preciso ter quem
acudisse a um desastre, a uma urgência, à precisão de ir chamar o médico ou
buscar um remédio. Não falo do Cabeço, onde as três famílias que lá moravam eram
por necessidade como uma família só. Falo de Estevais, a nossa aldeia, onde com
festa ou sem ela o meu avô já de moço aparecia quase todos os domingos. Para as
caçadas e para o namoro. Sempre de espingarda na mão, algumas vezes com o saco
de trigo ao ombro para a despesa. Esse trigo ia-o ele tirando pouco a pouco da
tulha paternal, às escondidas, ajudado pelas irmãs, que eram mais novas e lhe
queriam tanto bem que, contaram-mo elas um dia, sorrindo enternecidas, tudo o
que ele fazia se lhe desculpava, porque não se lhe conhecia uma maldade que
fosse. E se era como era, de verdade a culpa cabia ao pai, homem forreta, de
poucas graças, que fazia gosto em trazer a família de rédea curta». In
José Rentes de Carvalho, Ernestina, 2001, Quetzal Editores, Lisboa, 2009, 2014,
ISBN 978-989-722-171-2.
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