sábado, 9 de julho de 2016

Poesias. Eu. Augusto dos Anjos. «Mas muitas vezes, quando a noite avança, hirto, observa através a ténue trança dos filamentos fluídicos de um halo a destra descarnada de um duende…»

jdact e wikipedia

Eu. Monólogo de uma sombra
[…]
Tal a finalidade dos estames!
Mas ele viverá, rotos os liames
dessa estranguladora lei que aperta
todos os agregados perecíveis,
nas eterizações indefiníveis
da energia intra-atómica liberta!

Será calor, causa ubíqua de gozo,
raio X, magnetismo misterioso,
quimiotaxia, ondulação aérea,
fonte de repulsões e de prazeres,
sonoridade potencial dos seres,
estrangulada dentro da matéria!

E o que ele foi: clavículas, abdómen,
o coração, a boca, em síntese, o Homem,
engrenagem de vísceras vulgares,
os dedos carregados de peçonha,
tudo coube na lógica medonha
dos apodrecimentos musculares.

A desarrumação dos intestinos
assombra! Vede-a! Os vermes assassinos
dentro daquela massa que o húmus come,
numa glutoneria hedionda, brincam,
como as cadelas que as dentuças trincam
no espasmo fisiológico da fome.

É uma trágica festa emocionante!
A bacteriologia inventariante
toma conta do corpo que apodrece...
E até os membros da família engulham,
vendo as larvas malignas que se embrulham
no cadáver malsão, fazendo um s.

E foi então para isto que esse doudo
estragou o vibrátil plasma todo,
à guisa de um faquir, pelos cenóbios?!...
Num suicídio graduado, consumir-se,
e após tantas vigílias, reduzir-se
à herança miserável dos micróbios!


Estoutro agora é o sátiro peralta
que o sensualismo sodomita exalta,
Nnutrindo sua infâmia a leite e a trigo...
Como que, em suas clélulas vilíssimas,
há estratificações requintadíssimas
de uma animalidade sem castigo.

Brancas bacantes bêbadas o beijam.
Suas artérias hírcicas latejam,
sentindo o odor das carnações abstémias,
e à noite, vai gozar, ébrio de vício,
no sombrio bazer domeretrício,
o cuspo afrodisíaco das fêmeas.

No horror de sua anómala nevrose,
toda a sensualidade da simbiose,
uivando, à noite, em lúbricos arroubos,
como no babilónico sansara,
lembra a fome incoercível que escancara
a mucosa carnívora dos lobos.

Sôfrego, o monstro as vítimas aguarda.
Negra paixão congénita, bastarda,
do seu zooplasma ofídico resulta...
E explode, igual à luz que o ar acomete,
com a veemência mavórtica do aríete
e os arremessos de uma catapulta.

Mas muitas vezes, quando a noite avança,
hirto, observa através a ténue trança
dos filamentos fluídicos de um halo
a destra descarnada de um duende,
que tateando nas ténebras, se estende
dentro da noite má, para agarrá-lo!

Cresce-lhe a intracefálica tortura,
e de su’alma na caverna escura,
fazendo ultra-epiléticos esforços,
acorda, com os candeeiros apagados,
numa coreografia de danados,
a família alarmada dos remorsos.

É o despertar de um povo subterrâneo!
É a fauna cavernícola do crânio
Macbeths da patológica vigília,
mostrando, em rembrandtescas telas várias,
as incestuosidades sanguinárias
que ele tem praticado na família.
[…]

Poema de António dos Anjos, in “Eu e Outras Poesias 1912

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