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A
origem
«Os
céus de Graceland pareciam mais escuros do que sempre foram. Nuvens pesadas pairavam
sobre o ar por dias, como que anunciando uma tempestade. Tempestade que nunca chegava,
chuva que nem sempre caía. O vento do norte estava mais frio naquele Inverno. A
população de menos de dois mil habitantes já estava acostumada às variações
climáticas, mas nunca daquele jeito. A falta de qualquer luz do sol havia feito
morrer a vegetação e estava deixando os animais doentes. Mal se percebia a
noite vir e ir; ninguém via a lua ou qualquer estrela. O hospital recebia mais
casos de alergias e problemas respiratórios. As pessoas estavam amareladas como
papel envelhecido. Pelas ruas quase desertas caminhava a mais sombria das
figuras de Graceland. Sempre vagando de um lado a outro, fazendo o tempo passar
enquanto burlava mais uma aula de matemática. Wesley detestava matemática e
tudo relacionado a números. Seus olhos profundos estavam fixados no movimento
sem ritmo de seus pés, que eram arrastados pelo calçamento irregular. Os dedos
da mão já davam sinais de ressequidão; os que ele tentou esconder inutilmente
dentro dos bolsos do casaco. O zíper
fechado até em cima, mas se podia ver sua face desalinhada. Wesley não estava
incomodado com o clima esquisito. Nada podia ser mais esquisito para ele do que
ele mesmo. Ele não se deixava afectar por quase nada que fosse considerado diferente
ou anormal. Wesley Mason era a própria anomalia materializada em um rapaz de
dezanove anos. Vivia com uma tia porque os pais o haviam abandonado anos atrás.
Ele sequer sabia onde estavam. A tia era uma boa pessoa, mas não tinha
responsabilidade para cuidar nem de si própria. Ofereceu a Wesley abrigo, e
nada mais que pudesse ser aproveitado. E ele desenvolveu-se sem padrões e
parâmetros que pudessem lhe garantir uma adolescência natural.
O sinal
soou, e Wesley pode ouvi-lo de onde estava. Não se afastava muito dos muros da escola,
e não era importunado por estar cabulando aula. Os professores sempre o
preferiam longe, porque Wesley Mason por perto era sinal de coisas estranhas
acontecendo. Ele era tido como o portador de coisas ruins. Alguns chegaram a
creditar a ele o problema climático. O rapaz virou-se para retornar à sala de
aula e pegar seus livros. Era a última aula do dia, e mesmo sem nada para fazer
ele retornaria para a casa da tia e passaria o dia trancado em seu quarto. Não
daria tempo. Não naquele dia, não naquele instante. A rotina desanimada de Wesley
foi abruptamente rompida por um ruído metálico que o atingiu, fazendo com que
caísse de joelhos no chão sujo de paralelepípedos. Não havia ninguém nos
arredores. Wesley passou a mão em seu pescoço e havia sangue jorrando de algum
lugar. Imediatamente tudo ficou escuro, ainda mais escuro do que Graceland
estava. Seu corpo amoleceu como se estivesse a desintegrar-se, e ele perdeu completamente
os sentidos. Isso não era para ter acontecido agora. Uma voz ecoou no vazio. O
corpo trémulo de Wesley se esvaía em sangue, mas ainda não havia ninguém por
perto. A cidade parecia parada no tempo, por alguns minutos. Resgate-o. Outra
voz fez-se ouvir. Menos grave, mais marcante. Forte. Ou deixe-o, tanto faz. Ele
é só um humano. Sua compaixão para com o próximo é impressionante. Ele não é meu próximo. Ele nem é da
minha espécie. A voz menos grave parecia desdenhosa. Vamos, resgate-o ou não terá
mais tempo de fazer nada por ele. Acha mesmo que ele prefere ser condenado a
morrer? A passar a eternidade como nós? Dá no mesmo, não? Morto ele já está...,
quase. A imagem escura e borrada de um homem materializou-se imediatamente em
meio à avenida. Os estudantes já deviam estar saindo, mas nenhum movimento se
fazia visível. O homem caminhou lentamente até Wesley, e chutou para longe um
pedaço de telha de zinco. O vento estava forte, quase insuportável de se
tolerar. O céu negro anunciava a tempestade que parecia finalmente ter
encontrado seu caminho. Era impossível se imaginar que um dia tivesse havido
sol. O homem olhou em volta, certificando-se mais uma vez de estar sozinho.
Tomou Wesley em seus braços e inalou profundamente o ar. Delicioso, não é? A
voz grave provocou. Cale-se Stuart. Estou chegando. Na mesma fracção de segundo
em que sua voz preencheu o vazio, o homem desmaterializou-se, com Wesley em
suas mãos. Seus olhos enegrecidos encaravam o ferimento pulsante de Wesley,
enquanto uma de suas mãos pressionava o local onde a carne estava rompida. Hm! A interjeição de insatisfação de
Stuart mais parecia um dos trovões que se faziam ouvir do lado de fora.
Chegaram à estalagem onde ele estava, dirigindo-se para o quintal aos fundos. O
homem colocou o corpo de Wesley sobre uma mesa de granito e encarou o céu, cada
vez mais negro. Vamos levá-lo para dentro. Logo começa a chover. Você não vai
se desfazer com a água, Henry. Stuart deu uma gargalhada. Vamos..., se vai
fazer isso, faça logo. Não quero a estalagem toda ensanguentada. Se não vai
fazer nada com ele, deixe-me ao menos jantar.Você não tem o menor autocontrole.
Henry balançou a cabeça negativamente. Seus olhos ficaram tão escuros quanto o
céu e seus lábios se entreabriram em presas afiadas que imediatamente foram
cravadas no pescoço desfeito de Wesley. O rapaz gritou, mesmo com a garganta
dilacerada. Seu corpo inteiro tremeu como se recebesse um choque de potência
incalculável. Suas mãos se torceram em garras, e todos os seus ossos estalaram.
Henry tinha os dentes presos à carne enquanto o sangue escorria cada vez menos
pelo ferimento aberto. Não demorou muito. Henry satisfez-se com o sangue vivo
da artéria ainda pulsante. Wesley ainda tremia, agonizante, mas seus músculos
pareciam mais relaxados. Stuart assistiu toda a cena com olhos arregalados,
respirando aceleradamente. Depois, antes que fosse tarde demais, Henry fez um
corte, dilacerando um de seus pulsos e jogou o líquido avermelhado que ali
escorria dentro da garganta de Wesley. É a primeira vez. Stuart recompôs-se. Não
pensei que fosse tão... Simples? Henry passou a mão pelos lábios, retirando o
excesso de sangue. Vamos, Stu..., você precisa controlar todos esses impulsos
humanos. Sua respiração está ofegante!! A tentação do sangue é muito forte.
Stuart reclamou. Eu sei. E agora? Stuart apontou para o corpo de Wesley, que a
cada segundo se tornava mais rígido e menos sem vida. Ele morreu? Você já fez
isso antes, sabe o que vai acontecer agora? Henry franziu os lábios e encarou o
rapaz. Eu nunca fiz isso, Stuart. Nunca transformei ninguém, nunca achei
necessário condenar ninguém a ser como eu. Mas eu sei o que vai acontecer. Moveu
os ombros. Em algumas horas ele acorda. E teremos muita coisa a explicar para
ele, essa coisa de vampiro recém-criado, a relação com a família. Ele passa a
pertencer a você, é isso? Como eu já disse, eu nunca transformei um humano
antes. Henry pegou Wesley novamente nos braços e o carregou para dentro da
estalagem. Não havia mais sangue vertendo de seu corpo, nem algum sinal de que
um dia ele foi cheio de vida. Os músculos estavam rígidos como se Wesley
estivesse em algum tipo de estado catatónico. E ele estava muito mais pesado. Não
sei direito como funciona essa coisa de criador e criatura. Deveria tê-lo
deixado morrer. Ele me divertia. Ele divertia você também. Ainda assim. Não
seja ciumento. Será bom termos outro membro na família. Você anda muito possessivo.
Talvez com um brinquedo novo você me deixe em paz por alguns anos. Ou séculos,
se eu tiver sorte». In Tatiana Mareto, O Segredo de Esplendora, Le Livros, Ebook, Wikipedia,
2010,ISBN 978-858-045-020-0.
Cortesia
de LLivros/JDACT