sexta-feira, 8 de julho de 2016

Alma. Manuel Alegre. «Provocadores, gritava Gonçalo Pena fora de si, ele que, segundo meu pai, era homem de poucas ameaças e chapada pronta. À porta do Cine-Teatro havia um coro que procurava abafar com seus gritos os oradores»


Cortesia de wikipedia e JDACT




«(…) Então, repentinamente, Gonçalo Pena dizia a frase em inglês, espanhol e francês: This stencil bleu no es amarillo but noir. Meu pai ria até às lágrimas, Gonçalo Pena conservava-se de pé, imperturbável, o professor perdia a cabeça e, como não podia fazer mais nada, punha o meu pai no olho da rua, com falta de castigo. Gonçalo Pena continuava a apertar comigo, enquanto o Armandinho, estimulado talvez pela bordoada que tinha dado em Zeca Sucateiro, atacava mais uma vez pela esquerda. O antigo colega de carteira do meu pai era, como já disse, um homem alto, elegante, vestindo sempre do melhor, parecia um lorde. Dizia-se que era maçon e se entregava a práticas secretas, de espada e avental. Vivia ora em Alma ora em Lisboa, no Hotel Borges. E tinha dois pecados: conspirações e mulheres. Já ia na vigésima governanta. Recrutava-as por anúncio no Diário de Noticias. Elas vinham ao hotel e ele fazia a triagem. Às vezes aparecia em Alma com dois ou três oficiais reformados ou compulsivamente passados à reserva. Reuniam-se com a minha avó e falavam por subentendidos. Ficava no ar a expectativa próxima do levantamento, da pólvora e da revolução. Verdade que Gonçalo Pena tinha sido um dos heróis das Trincheiras, quando, por altura da Traulitânia, os republicanos de Aveiro aguentaram o avanço dos monárquicos que vinham do Norte. Foi a batalha mais sangrenta da República e nela morreu mais gente do que em todas as outras revoluções, incursões e contra-revoluções: trinta e quatro mortos, tal foi o preço da resistência republicana. Mas os monárquicos não passaram.
Já ele me pegava no braço para me levar, quando o Armandinho, verdadeiramente de cabeça perdida, finta o defesa direito (meu pai dizia béque), corre até à linha e não se sabe, não se saberá nunca se com intenção ou sem querer, enfia a bola pelo ângulo superior direito e empata a partida. Zeca Sucateiro não se aguentou, esqueceu-se da porrada e tentou entrar no campo para o abraçar. Mas o Armandinho ainda estava a ferver e foi preciso segurá-lo para ele não assentar mais um tento nas ventas de Zeca Sucateiro. Exasperado com a minha recusa, Gonçalo Pena, que também tinha dado um pulo com o golo de Armandinho, foi parlamentar com o meu pai. Que mal o ouviu e acabou por ceder. Ó pá, isto agora está no papo, vai lá que elas ficam todas contentes. Estávamos neste trinta e um de boca quando Neca Pereira, defesa central do Beira- Rio, que jogava de lenço branco a sair dos calções, resolveu ceifar o avançado centro do Vista Alegre em plena grande área. Penalti! Todo o campo emudeceu. O próprio Gonçalo Pena deixou de insistir, dir-se-ia que também ele já esquecido do comício. - Equipa de mer…, disse. Eu não gostei.  Podem não jogar nada, mas são os nossos. Tens razão. Não jogam nada, mas são os nossos.
O árbitro apitou, o avançado do Vista Alegre correu para a bola, fez uma finta de corpo, Zamora não se deixou levar, a bola foi para o lado esquerdo e ele defendeu. Foi o delírio. Só Gonçalo Pena, passado o entusiasmo, voltou à carga. Mas já o Beira- Rio estava de novo ao ataque. Então explodi: não vou, eu sou monárquico, não quero ser republicano, eu sou monárquico. E foi como se tivesse dito uma blasfémia. Gonçalo Pena ficou branco, abriu muito os olhos e não esteve com cerimónias: pregou-me uma estalada e agarrou-me pelo braço. E lá fui, arrastado. Entretido a dar instruções para dentro do campo, o meu pai nem se apercebeu. O comício era no Cine-Teatro, nome pomposo de um barracão que ficava entre a Câmara e a cadeia, já na parte baixa de Alma. Aos poucos fomos deixando de ouvir o barulho do Campo de São Cristóvão e começaram a chegar até nós os ecos do comício. Caminhávamos apressados, sem falar. Gonçalo Pena segurava a minha mão com força, com medo talvez que lhe escapasse e voltasse para o jogo. Havia uma pequena multidão à porta do Cine-Teatro. Quem manda?, perguntava um. E os outros respondiam: Salazar, Salazar, Salazar. Provocadores, exasperou-se Gonçalo Pena, ao ver aquele grupo de fato domingueiro, arregimentado nas redondezas para vir perturbar o comício da oposição. Vinha de lá de dentro a voz de Aurélio Silveira, ex governador-civil de Aveiro durante a Primeira República, talvez o mais íntimo de todos os companheiros de Geraldo Pais, meu avô. Era uma espécie de João Semana, não usava estetoscópio, auscultava com a orelha e diziam os outros médicos que ninguém tinha o ouvido de Aurélio Silveira.
Percorria as serras a cavalo, da Urzeira ao Caramulo. Republicano avançado, sonhava com uma nova revolução francesa e com a igualdade universal. Não cobrava aos pobres, levava-lhes remédios, chegava onde ninguém mais, contentava-se que lhe dissessem onde havia lebres, que depois caçava a cavalo, com galgos. Ele e a mulher, a quem todos chamávamos Tia Matilde, pequena, magra, o cabelo muito preto, os olhos muito azuis, capaz de andar vinte quilómetros a pé, faziam e distribuíam A voz de Alma, jornal republicano e independente. Sempre que o censor, um oficial reformado que morava do outro lado do rio, lhe cortava um artigo, Aurélio Silveira esperava-o em cima da ponte com o seu pingalim de caçar lebres a cavalo. E já se sabia que o coronel não viria à vila tomar café. Com mais corte, menos corte, A Voz de Alma lá ia levando o seu recado. E até o meu pai, que não era republicano mas tinha um fraco pelo Dr. Aurélio, colaborava com artigos sobre caça e outros desportos, sendo mais que certo que todos os anos, na data da morte do meu avô Júlio Faria, considerado o maior desportista do seu tempo, dedicava um artigo à memória do pai, recordando, entre outros feitos, aquele célebre torneio de tiro aos pombos em que meu avô, apesar de monárquico e membro da Casa Real, ousara derrotar o rei Carlos I, ganhando a Taça Eduardo VII.
Provocadores, gritava Gonçalo Pena fora de si, ele que, segundo meu pai, era homem de poucas ameaças e chapada pronta. À porta do Cine-Teatro havia um coro que procurava abafar com seus gritos os oradores. Quem manda?, perguntava, com um sorriso sacana, um tipo de bigodinho fino e olhos achinesados. E o grupo respondia: Salazar, Salazar, Salazar, Carmona, Carmona, Carmona. Aquilo, não sei porquê, se pelas vozes, se pelas caras, se pelo todo, fazia-me um arrepio pela espinha acima. Olhava-se para eles e percebia-se que não eram dos nossos. E à terceira vez que o sacaninha perguntou Quem manda?, Gonçalo Pena respondeu-lhe: a pu… que te pariu. Foi um ver se te avias. Os dois primeiros, ainda Gonçalo Pena os derrubou. Mas eram muitos. Consegui furar e entrar na sala. Lá estava a minha avó, toda de negro vestida, com uma jóia de brilhantes na gargantilha. Ao lado a minha mãe, ostentando, ao peito, as armas da família do meu pai. Assim que me viu, Aurélio Silveira interrompeu o discurso e apontou na minha direcção. Toda a sala se levantou a bater palmas, era como se tivesse chegado o menino Jesus. A muito custo consegui balbuciar ao Dr. Aurélio o que se passava. O nosso amigo Gonçalo Pena está lá fora a ser agredido por um bando de provocadores a soldo do regime. Mas não vamos responder a provocações, a nossa força é a razão. Qual quê? Em menos de um fósforo, metade da sala estava cá fora a despachar o do bigodinho e acompanhantes». In Manuel Alegre, Alma, Publicações dom Quixote, 1995, ISBN 978-972-202-668-0.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT