sábado, 30 de julho de 2016

O Vaticano contra Cristo. I Millenari. «Estes homens da Igreja que distribuem ordens, recorrem gostosamente ao tema da vontade de Deus, identificando-a sempre e de qualquer forma com o próprio interesse…»

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«(…) Os subalternos silenciosos, da ordem dos oitenta por cento, continuam em desvantagem, porque eles próprios convencem o superior da ideia extravagante de que o seu poder é realmente ilimitado e indiscutível. A selecção, a promoção e a despromoção são a seu bel-prazer, mesmo que tenha de cair no pecado social da injustiça arbitral. E necessário saber interpretar o sofrido silêncio de quem não sabe gritar os inalienáveis direitos da pessoa humana, dado que o ambiente cria a virtude da cumplicidade de estar calado e de suportar. Os súbditos amarrados à estaca, os despromovidos, os excluídos da protecção das estrelas do clã encovilam-se no silêncio da glaciação curial. Está escrito: Zelus domus tuae comedit me. Quando a casa de Deus, a Igreja, está a arder, cada fiel tem a obrigação de saber utilizar os extintores para dominar o incêndio: se nela há o fumo do demónio, é necessário ter em atenção os focos que o alimentam. Quem se põe a olhar o incêndio de Roma do cimo da colina, como Nero, torna-se conivente com a destruição. Quo vadis Domine? Neste aniversário bimilenar? Vou expulsar satanás que está a incendiar a minha Igreja!
Enquanto os mal-intencionados contrariam o bem com a maior naturalidade, também os indulgentes o afastam com fanático desinteresse pensando, desse modo, prestar a Deus culto de abulia. E, assim, todos julgam estar de bem com as suas consciências. Deus, que tem o poder de justificar o pecador, torna-se impotente diante de quem se justifica à sua maneira, passando sem ele. Certos prelados da curia, tal como os meteorologistas, regulam os tempos da Igreja segundo os humores, as conveniências e as mutabilidades das aspirações próprias e alheias, semeando discórdias e perturbações. Os carrascos, cada um do seu próprio ponto de vista, presumem interpretar o pensamento do outro, contradizendo-se uns aos outros como nas previsões do horóscopo. A história da cúria oferece abundante material ilustrativo de eclesiásticos que procuraram fazer aplicações do Evangelho de forma a garantir-lhes a perpetuidade dos privilégios adquiridos. Isto chama-se desvirtuar a vontade divina para a fazer equivaler aos pontos de vista individuais. Estes homens da Igreja que distribuem ordens, recorrem gostosamente ao tema da vontade de Deus, identificando-a sempre e de qualquer forma com o próprio interesse ao qual todos os subalternos devem submeter-se, sem limites e sem discussões. Deste modo as coisas se baralham, depois, quando hierarquia, autoridades, amigos, juristas, psicólogos, ascetas e tantos outros se intrometem a complicar a meada dos acontecimentos vistos de perspectivas diferentes. Chega-se a um ponto em que não se sabe a quem obedecer sem desobedecer a um outro.

A Igreja não é o Vaticanismo
O pensamento dos padres orientais sobre o conceito teológico da Igreja fundada por Cristo não resulta tão totalizante como nos padres do Ocidente. A teologia ocidental ressentiu-se, de forma determinante, da conceptualização genial de Santo Agostinho, que foi capaz de exprimir a sua opinião sobre as grandes verdades do saber humano de então, orientando, assim, a vida social e individual das gerações futuras. Mas essas verdades, magistralmente expostas pela Águia de Hipona, necessitavam de se adequar e readaptar à vastidão intelectiva do saber humano das épocas seguintes, evitando condicionar-se reciprocamente. A Igreja existe para os homens e não os homens para a Igreja. Todos os estudiosos sérios, de qualquer quadrante, estão conscientes disso. Os padres orientais comparam a Igreja a um grande navio invencível, diríamos, hoje, um Titanic. Quem quer que nele embarque, neste mar tumultuoso, fará uma travessia tranquila e serena, diferente da travessia noutras embarcações. No pensamento oriental todos os que não se encontram dentro desse barco valem-se de outros meios providenciais para a travessia em ordem ao fim último de todo o homem, com jangadas, chalupas, barcas, bóias de salvação, isto é, através de outras crenças religiosas que, com dificuldade e menos rapidez, orientam os homens para a salvação. É importante esta esperança». In I Millenari, Via col vento in Vaticano, Kaos Edizioni, 1999, O Vaticano contra Cristo, tradução de José A. Neto, Religiões, Casa das Letras, 2005, ISBN 972-46-1170-1.


Cortesia Casa das Letras/JDACT