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Não respondeu. Antes da festa ainda as tinha, embrulhadas no papel das décimas?
no meio da caderneta?, de brincadeira até disse que podiam comer um porco
inteiro. Encostada ao fontenário um instante, agoniada de vómitos,
encaminhou-se para a igreja, sem dar conta de que a seguravam pelo braço, a
sentir as entranhas despegadas e o garrote do medo, sufocando. Os dedos
procuraram o rosário no bolso do avental, remexendo o lenço, a medalha, o
pensamento longe, ou gastastes tudo?, onde é que as pusestes?, a nossa desgraça!...,
rogai por nós pecadores, agora e na hora... Ao vê-lo no arraial, a rir-se das
coisas sem tino que dizia, nem sequer lhe tinha passado pela ideia, como se ele
fosse melhor que os outros! Oh! A nuvem formou-se de repente, cor de chumbo,
destoando no azul limpo do céu. Não tarda aí! As moscas, sentindo a mudança,
desalmam-se contra as bestas, contra as crianças que as mães deixam à soleira
da porta, na pressa de acudir à lenha, à roupa, de recolher as lonas dos
feijões. A rua enche-se de gente, gritos, estrondos, as galinhas voam, os
porcos desembestam contra as tábuas das cortelhas, grunhindo de medo, no céu
aparece outra nuvem e a luz faz-se crua como de madrugada, o vento ruge entre
os pinheiros, o pó escurece tudo. Caem pingas grossas aqui, além, com o
primeiro relâmpago desaba o dilúvio, num pronto a rua tem palmos de água e ao
longe ouve-se o barulho da ribeira, engrossada pelo enxurro que as encostas
ressequidas não seguram. Os homens correm atrás dos animais que o medo faz
cabrear, guiam-nos à cinturada, cegos, encharcados, rogando pragas, chamando em
vão. À mula ninguém acode. Presa pela rédea a uma argola, escouceia contra a
parede, desvairada, sangrando da barbela onde a serrilha morde a cada
movimento. De quem é? O sapateiro espreita para ver, mas os outros, sentados em
torno da banca, não se interessam. Ainda se enforca! E a rir, aprovando, retoma
a forma, atento à conversa. Qual trezentos?... Nem trinta. Dez mil réis vi eu.
Mais nada. E o que deu à outra? Tanto como tu! Diz lá, hein? Quanto estavas...
E ela disse..., quanto foi? Assustado, faz sinal que a mulher em cima ouve
tudo, põe o dedo sobre os lábios. Ide lá acudir! Que lhe acuda o dono. Deu à
filha. Até disse que a punha por conta e ela começou a rir. A mulher a descer a
escada fá-los calar, passa, queda-se à porta a olhar a mula que embaraçou a
rédea no cachaço. Mas de quem é? Do Grande. Pouco se lhe dá! Nem muito. Com
certeza está a cozê-la. O Manuel levanta-se, repuxa as calças e, apagando o
cigarro cuidadosamente, guarda a ponta no bolso. Que horas são? Quatro. A ver
se veio carta. Parece que quer mandar arranjar a casa. A esses nada falta!
Dizem que ele sozinho pagou o fogo! Cá por mim, se um dia me atrevo... Só as
lojas que ele tem! E as casas!... Olham-no escarninho, sem acreditar, mas
acenam que sim, que sim, tem, pois tem, e tocam-se com os cotovelos, riem-se do
lorpa, bazófia que chega para dez, até parece que o que o primo ganha lhe está
no bolso, se é que ganha, que ainda ninguém foi ver. A tia Rita, corcovada, não
chega à argola, furiosa ao vê-los sentados: vinde cá, ó mandriões! Quem é o
desalmado que deixa assim... O Abílio levanta-se contrafeito e, sem paciência
para deslindar os nós, tira a navalha, corta a rédea, a mula vai rua abaixo
toda mansidão. Brusca como veio, a trovoada passou, as crianças brincam nas
poças, da bica sai uma água barrenta que não se aproveita, as galinhas
depenicam a lama com frenesim, no forno ouve-se um grito seguido de um estalo,
depois alguém chora e uma voz que diz: assim aprendes. O Manuel pára, espera
que a mulher do sapateiro se afaste da porta e o deixe passar. Escute o que lhe
digo!... A loja divide-se em duas. Dum lado o comer, os panos e o que é da
lavoura. Do outro a taberna: balcão, pipas, uma prateleira para os copos,
bancos que ainda brilham porque foram lavados e esfregados para a festa, e as
mesas também, mas nelas ficaram manchas do vinho derramado, queimadelas de
cigarros, entalhes feitos à faca pelos que bebem pouco. A guitarra e a viola
estavam dantes penduradas à esquerda da porta, servia-se quem queria, mas por
causa dos abusos pô-las sobre as pipas, atrás do balcão. Toca quem bebe. Mandou
tapar a janela a pedra e cal, penduravam-se lá os curiosos, ficam os candeeiros
acesos, porque a porta dá para o pátio donde não vem luz. Uma furna onde o Zé
Grande se agasalhou ao primeiro cheiro de trovoada, esquecido, afagando o pêlo
do cão que o farejara desde casa. O balcão corre ao longo da taberna,
prolonga-se na outra loja, separa o Marques dos fregueses como uma fronteira.
Uma grade completa a divisória. O taberneiro deita uma vista de olhos, mas não
ouve, habituado aos que se entornam com dois copos, evitando dar trela. Faz que
não vê, avia, arruma, arranja lugar para as caixas que o camião vai trazer. Um
quartilho. Não se apressa, mas vem, desconfiado, dá-lhe tempo a que tire o
dinheiro. Não fio. Também não preciso! As mãos procuram em vão e o taberneiro
pousa a medida. Rebusca dum lado, do outro, arreda o cachorro para mexer à vontade.
Sete mil réis. Ainda agora os tinha! Pois tinhas. Meça lá, homem! Verá que os
encontro!» In José Rentes de Carvalho, o Rebate, 1971, Quetzal Editores, 2012,
ISBN: 978-989-722-005-0.
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