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«(…) Enquanto o corpo arrefecia. Mantiveram-te
aí de cara descoberta, a barba loira com alguns fios grisalhos repousada sobre
a dobra do lençol, como se estivesses dormindo. Na sala a esta pegada os
principais assistiram à abertura do testamento, que Pina leu com voz pausada.
e, quando aqui te lavavam, compunham e amortalhavam segundo tua condição, para
te deitarem na tumba, despejaram os nobres o paço, retirando-se aonde pousavam a
ordenarem as suas pessoas para o saimento que à meia-noite se encaminhará à Sé
de Silves, onde ficarás sepultado... Já os sinos calaram. Agora estou sozinho
com o teu silêncio, meu senhor, com o lume das velas e o cheiro da cera, Não há
pranto de carpideiras nem vigília de parentes. Morreste desarrimado dos teus,
sem pai nem mãe, sem filho nem filha, irmão ou irmã. Tão-pouco a rainha tua
esposa acorreu aos teus últimos apelos, nem o cunhado, que te sucede no trono.
Morreste fora de Portugal, no reino do Algarve, em Alvor, este tão pequeno lugar...
Fatigado das noites mal dormidas,
recosto-me numa cadeira e adormeço. Pego logo a sonhar. A tua figura, como
tantas vezes desde há quatro anos quando surgiram os primeiros sinais, aparece-me.
Fala-me numa voz de longe, semelhante a ressonância de poço de água. Que me
quererás dizer? Vejo-te os beiços exangues a arredondarem-se para o molde da
palavra que de início não decifro mas por fim me parece ouvir. Acordo
sobressaltado. A mortalha, ainda há pouco composta, mostra-se revolta. Põem-se-me
os cabelos em pé. Tento violentar o pavor, levanto-me e destapo-te o rosto:
sereno, olhos cerrados neste dormir sem respiro. Qualquer aragem vinda das
frinchas da janela, penso, qualquer hálito da noite terá levantado a ponta do
sudário... Volto a sentar-me, a procurar o esquecimento do sono, mas o pensamento
não me larga. Pressinto que o pesadelo vai regressar. Estão-se-me pesando os
olhos, sinto passos no sobrado da quadra ao lado. Quem vem lá? Eu. Ah, és tu,
Faria! Ainda bem que chegas. Estava com medo. Medo? Tive um sonho. O rei levantava-se,
caminhava para mim... A tensão destes dias criou-te fantasmas na imaginação. ...e
falava-me. Parecia querer dizer-me alguma coisa, mas a voz distante e pastosa,
a princípio, não foi de jeito a que a percebesse. Depois repetiu, tão claro que
entendi sílaba por silaba a palavra...
Que
palavra? ...peçonha... Foi o que eu lhe li nos lábios: peçonha... Talvez o rei
esteja a pedir ...a exigir ...sei lá... Suspendia-se a fala naquela ideia
terrível, começou de se ouvir um rumor surdo, um gemido alongado, sob os nossos
pés. Os objectos deram de oscilar e tinir nos seus lugares, as portas e janelas
entraram a vibrar e o lençol que cobria o morto descaiu. Quando olhámos, o cadáver
tinha os olhos abertos. Ergui-me horrorizado. Faria manteve-se calmo, tolhendo-me,
com a mão no meu pulso, qualquer movimento desatinado: logo passa, disse. O
rumor foi abrandando, deixou de soar, tudo se aquietou. Faria levantou-se, foi
junto do teu corpo e muito de leve com os dedos cerrou-te aquele pavoroso olhar
a eternidade: descansa, querida alma!, ouvi-lhe murmurar... e lançou-te por
cima a mortalha branca. Fomos para a sala do lado. Na presença de um morto ou se
fala em voz baixa ou não se fala. Respeito? Constrangimento? Tu aí era como se
ouvisses o que dizíamos. Diante do teu corpo, por hábito de reverência quando
eras vivo, ou porque qualquer bafo de fumo supersticioso se nos metera agora no
tutano dos ossos, ficamos atados, tanto mais que o assunto te dizia respeito.
Deixámos
no entanto, sem sabermos porquê, a porta de comunicação entreaberta. Turvados...,
disse Faria, como se o pensamento se arrastasse de longe. Estamos sentados à
mesa grande que ainda se conserva ocupada pela multidão dos mapas de que te servias.
Enquanto o ouço, as minhas mãos abrem distraídas um rolo, pegam numa régua e o
discurso interior por vezes se me desvaira. ...andamos todos turvados, vai dizendo
Faria. O remexer constante de uma ideia pode engendrar na matriz do cérebro o
germe dos sonhos, dormimos e contínuo laboramos a criar visões que não devemos
tomei como realidade. Não, respondo-lhe. Os sonhos são linguagem de outras
medidas que se não delimitam às deste mundo. a linguagem dos que já passaram e
dos que estão por vir. Aviso, premonição, recado de Deus ou do Diabo. Acredito
que o rei me queria revelar um terrível segredo e que algo mais do que mero
sonho paira no ar invisível em redor de nós. Diz-se que, depois de morrermos,
sabemos tudo. A esta hora ele já conhece quem é que... Sei em que estás a
cuidar. Não é verdade que já há muito essa desconfiança se tinha insinuado no
espírito de tantos de nós?» In Fernando Campos, A Esmeralda Partida, 1995,
Difel, Lisboa, 2008, ISBN 978-972-290-330-1.
Cortesia
de Difel/JDACT