terça-feira, 5 de julho de 2016

Tudor. O Segredo. CW Gortner. «Tudo à minha volta pareceu recuar. Recordando o que o guarda no portão dissera, um disparate qualquer sobre a Princesa Isabel estar na cidade, senti uma pontada no coração quando a cavalgada acelerou»

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«(…) A multidão, um grupo de gente rude e de ar miserável, parou. Distraidamente, observei alguns miúdos de rua descalços que iam andando pé ante pé pelo meio daquela gente, com cães colados aos seus calcanhares; eram gatunos e, pelo aspecto, nenhum teria mais de nove anos. Era difícil olhar para eles sem me ver a mim mesmo, o desgraçado em que talvez me tivesse tornado caso os Dudley não me tivessem acolhido. Mestre Shelton fez uma carranca. Estão a bloquear-nos a passagem. Vai lá ver se descobres para onde é que esta gentalha está toda a olhar especada. Se puder ser evitado, preferia não ter de abrir caminho à força. Passei-lhe as minhas rédeas, tornei a desmontar e enfiei-me pela multidão, sentindo-me, por uma vez, grato pela minha constituição delgada. Insultaram-me, empurraram-me e acotovelaram-me, mas consegui chegar lá à frente. Pondo-me em bicos de pés para espreitar por cima das cabeças, vislumbrei a estrada principal, pela qual avançava uma cavalgada sem nada de particular. Estava prestes a virar costas àquela cena quando, abrindo caminho aos empurrões, uma mulher corpulenta veio pôr-se ao meu lado, agitando no ar um ramo de flores meio murchas. Deus vos abençoe, querida Bess!, gritou. Deus vos abençoe, Vossa Graça!
Lançou as flores ao ar. A multidão calou-se. Um dos homens que seguia na cavalgada recuou mais para o centro da mesma, como se para esconder algo, ou alguém, dos olhares. Foi então que reparei num cavalo de oficial malhado escondido por entre os cavalos maiores. Sabia apreciar cavalos; olhando ao seu pescoço arqueado, à musculatura suave e ao empertigado erguer dos cascos, reconheci tratar-se de um exemplar de uma raça espanhola raramente vista em Inglaterra e mais cara do que o conjunto que o duque tinha nas suas cavalariças. E então olhei para o cavaleiro. Percebi de imediato tratar-se de uma mulher, ainda que um manto com capuz lhe ocultasse as feições e que umas luvas de couro lhe escondessem as mãos. Ao contrário do que era costume, ela montava o cavalo com uma perna para cada lado; contra os lados da sela trabalhada em relevo, as suas vistosas botas chamavam a atenção, estava ali uma rapariga franzina, sem nada que a distinguisse à excepção do cavalo, mas que avançava como se determinada a alcançar o seu destino. Porém, sabia que estava a ser observada e ouviu a exclamação da mulher, porque voltou a cabeça. E então, para meu espanto, tirou o capuz e revelou um rosto longo e delgado, envolto numa auréola de cabelos acobreados. E sorriu.
Tudo à minha volta pareceu recuar. Recordando o que o guarda no portão dissera, um disparate qualquer sobre a Princesa Isabel estar na cidade, senti uma pontada no coração quando a cavalgada acelerou pela estrada fora, desaparecendo ao longe. A multidão começou a dispersar, embora um dos miúdos de rua tenha avançado furtivamente até à estrada para apanhar o ramo de flores. A mulher que o lançara mantinha-se imóvel, como se hipnotizada, as mãos sobre o peito e o olhar perdido na direcção da cavalgada que já desaparecera, com as lágrimas a brilharem-lhe nos olhos fatigados. Estendendo a mão, toquei-1he ao de leve no braço. Ela voltou-se para mim com um ar aturdido. Viste-la?, e, embora estivesse a olhar directamente para mim, tive a impressão de que não me via. Vistes a nossa Bess! Finalmente ela veio ter connosco, louvado seja Deus. Só ela nos pode salvar das garras de Northumberland, aquele demónio. Mantive-me imóvel, grato por trazer a libré no alforge. Era assim que os londrinos viam João Dudley, duque de Northumberland?
Eu sabia que o duque era actualmente o mais destacado ministro do rei, tendo chegado ao poder após a queda de Eduardo Seymour, o anterior protector do rei e também seu tio. Muitos na nação tinham amaldiçoado os Seymour pela sua avareza e ambição. Teria o duque incorrido no mesmo ódio?» In CW Gortner, O Segredo dos Tudor, 2011, tradução de Miguel Romeira, 20/20 Editora, Topseller, 2014, ISBN 978-989-862-643-1.

Cortesia de Topseller/20/20Editora/JDACT