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«O
dandismo baudelairiano está não apenas na raiz de toda a fundamentação estética
do que produziu o autor, mas até mesmo na origem e na justificação de sua conduta
humana e social. Recorra-se ao próprio poeta para que se entenda melhor essa
instigante e paradoxal postura diante da vida e da arte. O que seria exactamente
esse dândi e qual sua mais funda
significação? Para Baudelaire, como para Pascal, a natureza estaria corrompida
pela própria natureza, o que se torna particularmente claro quando, no
fragmento XXII de Fusées, nos diz ele: l’homme, c’est-à-dire chacun, est
si naturellement dépravé qu’il souffre moins de l’abaissement universel que
de l’établissement d’une hiérarchie raisonnable. Essa visão de uma natureza desde
sempre e necessariamente corrupta faz-se ainda mais nítida numa passagem de
Éloge du maquillage, em L’art romantique, na qual Baudelaire sustenta
que la nature n’enseigne rien, ou presque rien. Pouco adiante diz ele que o crime,
dont l’animal humain a puisé le goût dans le ventre de sa mère, est
originalement naturel, concluindo afinal que a virtude, e que o mal se fait
sans effort, naturellement, par fatalité, ao passo que o bem est
toujours le produit d’un art. Ao reagir dessa forma à ênfase que puseram
algumas correntes do século XVIII sobre o papel da natureza enquanto fonte de
todo o bem e de todo o belo, Baudelaire deixa muito clara sua posição: tudo o
que é natural é abominável, incluíndo-se aí a mulher, que, por ser natural, c’est-à-dire
abominable, é também toujours vulgaire, c’est-à-dire le contraire du dandy. É
esse dândi que lhe justifica, como se
lê no fragmento XVII de Fusées. Em suma, uma self-purification and
anti-humanity, como ele próprio grafa e grifa em Fusées e que
corresponde à fórmula graças à qual o poeta ou fugia da dor intolerável ou a
assumia, mas apenas sob o disfarce estético da maquilhagem. Entenda-se, pois, que
a máscara do dândi, se de um lado é
artifício, de outro não deixa de ser algo que se lhe aderiu à pele para sempre
e tão profundamente que não mais lhe foi possível arrancá-la.
Claro
está que, visto desse ângulo, o dandismo baudelairiano nada mais é que uma manifestação
do espírito, um processo da vida interior cujas raízes e implicações são bem
mais fundas do que se possa imaginar. É possível até, como sugerem Ferran e Ernest
Raynaud, que a religião de Baudelaire, esse catolicismo travestido que se insurge
contra os instintos originais, seja uma consequência lógica e como que uma conclusão
de seu dandismo. O artifício do dandismo corrigiria assim a imperfeição natural,
e esse é o desiderato único de toda a civilização. Quando Baudelaire nos afirma
que tudo o que é natural é abominável, nada existe aí de subversivo, pois tal concepção
está contida na ideia do pecado original. É também a partir desse procedimento
aristocrático que se entende mais claramente o Baudelaire esteta, o escritor
artista, o criador sempre insatisfeito com o que escrevia. Esse dândi é o próprio artista superior, o
lúcido e refinado demiurgo do caos vocabular, aquele que se consagra à
elaboração artificial, ou seja, intelectual, de um processo criativo do
qual a natureza não participa. Corrupta em si mesma, a natureza é amoral e
monstruosa. Compreende-se assim que, ao abordar o problema do dândi em L’art romantique,
Baudelaire sustente: le mot dandy implique une quintessence de caractère et une
intelligence subtile de tout le mecanisme moral dumonde. Esse dândi é, em suma, o próprio princípio da
criação, centrado em si mesmo e produto de l’inébranlable résolution de ne pas
être ému, assim como un feu latent qui se fait deviner, qui pourrait mais qui
ne veut pas rayonner». In Charles Baudelaire, As Flores do Mal, 1857,
Relógio d’Água, 2003, ISBN 978-972-708-762-4.
Cortesia
de Relógio d’Água/JDACT