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«(…)
O
jantar
À mesa
ficava silenciosa e rígida, os olhos fixos no prato quase sempre lavrado, ou na
toalha quase sempre bordada, fingindo alhear-se ou apenas dar atenção, os
pulsos, as mãos assentes na mesa, os cotovelos alinhados, pegados ao dorso, ao
vestido branco ou talvez amarelo-claro, de um tecido tão brando, de um amarelo
tão diluído, que me parece branco daqui do outro lado da mesa de onde a fito,
tentando capturar-lhe o olhar vago que me foge para se refugiar nos objectos;
distingo-lhe antes a palidez macerada das mãos a contrastar com o tom moreno da
pele queimada pelo sol, da pele lustrosa dos ombros, da cara, dos braços unidos
ao vestido amarelo ou talvez branco, que daqui me parece amarelo devido à luz
ácida que desce do tecto directamente sobre nós. E ela, hirta, a contornar com
os olhos o recorte do bordado creme no verde aguado da toalha onde roça a ponta
aguda dos dedos, das unhas sem verniz ou com um verniz prateado sem brilho, a
confundir-se de perto com o brilho baço, sóbrio, da prata dos talheres dispostos
junto aos pratos lavrados: uma rosa pintada, quase invisível. Ela imóvel,
fingindo alhear-se ou fingindo-se atenta, a boca contraída pelo esforço, o
corpo decerto contraído sob o vestido, o vestido macio solto nas ancas, no
ventre, colado aos seios. E a luz desce, facetada nas garrafas, nos frascos
quadrados onde o vinho se concentra gelado, os frascos brilhantes que os
criados transportam silenciosamente nas pequenas bandejas; e ela segue os
criados com os olhos, só então interessada: as únicas pessoas vivas naquela
sala, pensa, sim, é isso que pensa, e a luz desce facetada na sua mão, melhor,
no copo que segura, que todavia vejo erguer aos lábios sem cor, silenciosa e
tensa, sempre prestes a erguer-se para correr, fugir pelas áleas geométricas do
jardim de buxo aparado rente a delinear-lhe o labirinto árido, o vestido
branco, então sem qualquer dúvida branco, solto, comprido, solto sobre os pés,
atirado pelo vento, solto sob o vento, e ela ágil mas lenta, já a levantar-se
da cadeira, a abrir as enormes portas envidraçadas. Levanta ainda as mãos como
que a tentar explicar-nos, todos silenciosos a olhá-la; a tentar explicar-nos.
Mas apenas afasta os cortinados e corre pelas áleas onde a lua incide como no
seu fato, nos seus cabelos, como na estátua, aquela onde se encosta tentando
esconder-se de nós, ou somente a apoiar-se na estátua que lhe surge de súbito,
afinal apenas uma figura de mármore inclinada, sorrindo, o sorriso perdido no
escuro da noite. E ela ergue as mãos como há pouco, mas num grito. Só uma vez,
um único grito, ronco. Mais um gemido de animal do que um grito. Olho-a,
sentada, rígida, o copo perto dos lábios, silenciosa, os dedos unidos, os
cotovelos junto ao tecido amarelo do fato, tão idêntico ao meu, branco, que do
outro lado da mesa talvez pareça amarelo, devido a luz ácida que desce do tecto
directamente sobre nós.
Os
outros
Com
uma estranha sensação de desamparo, deixa cair os brincos sobre a cama; na cama
aberta onde ela se deixa cair para trás, de costas atravessadas no lençol, a
nuca no cobertor puxado para os pés. Tem uma vontade louca de poder dormir.
Fechar os olhos e dormir. Parece simples dormir, afinal demasiado simples. Se
alguém a olhasse, pensaria: uma mulher cansada, uma mulher adormecida. A única
luz que atravessa o quarto passa por debaixo da porta e esvai-se quase toda,
absorvida pela carpette. Alguém que a
olhasse agora pensaria: adormeceu, e, inclinando-se, talvez a tentar
confirmá-lo, na quase total escuridão que se roça ao de leve no quarto,
encontraria sob as palmas duras das mãos a forma aguda, fria, dos brincos que
ela atirara para ali ao deitar-se, ao deixar-se cair demasiado cansada para se
aguentar durante mais tempo em pé, sala para sala, subtilmente em todo o sítio
sorrindo para os outros ou já sem mesmo isso conseguir, deslizando apenas de
uns para os outros, distribuindo assim a sua presença em que todos se detêm com
minúcia, disfarçadamente: reparem nas olheiras, na boca, nos olhos, os olhos;
reparem nas olheiras, reparem na boca, reparem nas olheiras, na boca, nos
olhos, os olhos; reparem no movimento das mãos sobre o vestido, reparem nas
olheiras, a boca..., e a mulher aproxima-se outra e outra vez, desliza as mãos
sobre o vestido, nos braços, como se tivesse frio, outra vez, ainda e ainda;
aproxima-se cansada, cada vez mais cansada e com todo o cansaço marcado, bem
marcado no rosto, nos olhos; reparem nos olhos e a mulher aproxima se,
encosta-se a um canto qualquer da sala, desliza as mãos pelo vestido, nos
braços e desesperada outra vez no vestido, cansada, terrivelmente cansada: reparem
como se encosta à parede; as olheiras, reparem nas olheiras, as mãos sobre o
vestido, a palidez cada minuto que passa; a palidez: reparem na flor que lhe
murcha no peito; a mulher desencosta-se e sente todo o peso do corpo para
arrastar consigo pelas salas. Aproxima-se, dizem, reparem, aproxima-se. Mas a
mulher empurra docemente a porta do quarto e lá dentro fica atenta a escutar o
ruído das vozes embatendo na madeira da porta por detrás das suas costas. O murmúrio
escondido das palavras: reparam como está cansada, os olhos, reparem nos olhos,
toda ela é um enorme cansaço, reparem. A flor murcha-lhe no peito, na pele do
peito, metida entre os seios. Reparem, pensa ela, como os meus dedos tremem e
nem forças tenho para os aquentar firmes nas vossas mãos, à despedida. E a
mulher tem o murmúrio baço das vozes, do conjunto baço daquelas vozes entrelaçadas
umas nas outras, por detrás dos seus ombros. Encostada à porta, vai-se
habituando ao escuro. Deitada de costas, vai-se habituando: habituando sempre.
Quem a olhasse agora, pensaria: adormeceu, mesmo reparando nos seus olhos
abertos. E inclinando-se estenderia uma das mãos até lhe tocar o rosto para a
afagar na boca docemente até se convencer da sua morte. Reparem, pensa ela,
como estou cansada, parece dizer-lhes encostada à parede naquele canto da sala.
Sim, reparem-lhe na boca, como ela está cansada, e a flor no calor do seu
corpo, as olheiras, as mãos sobre o vestido, reparem: a boca, a boca, as
olheiras. Reparem. Os homens imaginarão o seu corpo; e nunca se cansariam de
imaginar o seu corpo mesmo que o tivessem debaixo da carícia aguda das palmas
firmes das mãos. Porém, se alguém se debruçasse agora sobre ela, para lhe
encontrar no vulto uma confirmação de vida, os dedos deter-se-lhe-iam antes na
forma dura e fria dos brincos, logo continuando em direcção do pescoço
flexível, como que desconjuntado sobre a cama. A mulher está atenta à sua
própria ausência». In Maria Teresa Horta, Ambas as Mãos sobre o Corpo, 1970, Publicações
Europa América, Colecção Século XX, 1984, ISBN 978-972-100-090-2.
Cortesia
PEAmérica/JDACT